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Mãos, pés e poesia!

Publicado em: 14/07/2014 |

 

* por Wander Bêh, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

Limitar os poderes da representação da vida é limitar a própria vida – sobre a derrota da seleção brasileira e outras coisas mais!

 

“É preciso voltar às coisas mesmas”.  É com essa frase de Husserl que eu começo esse texto que busca articulações sobre vida, arte, esporte e representatividade através de um dos únicos assuntos que conseguem fomentar a discussão filosófica em nosso país: o futebol.

 

Quando Husserl disse essa frase, ele refletia sobre as relações fenomenológicas entre ser e objeto. Em seus estudos, pontuou o quanto impregnamos de nós mesmos tudo que está em nossa volta – o que fica muito evidente quando pensamos nas reações diversas de duas pessoas diante de uma mesma situação: enquanto uma, ao ler um livro ou ver um filme, se emociona e encontra mil respostas para suas questões íntimas, outra, em contato com a mesma obra, não é tocada por nada que diz a história que leu ou viu. O mesmo acontece com tudo. Com aquele prato, que é o seu favorito, mas que eu experimento e não gosto; também com o discurso de tal pessoa, que me agradou mas soou superficial para você. A moça extremamente sensual que mexeu comigo, e você achou sem graça, também revela o quanto das nossas próprias histórias aparecem na hora de olhar para o que quer que seja. 

 

Voltar às coisas mesmas, então, seria um exercício de esvaziamento, de tentativa de limpeza, um querer ver a coisa – mesmo que por um segundo – como ela é, a fim de gerar um novo conhecimento sobre o assunto. 

 

É para ver e ouvir o que ele não veria nem ouviria com seus olhos e ouvidos impregnados de si mesmo, que Freud se colocava em estado de atenção flutuante diante de seus pacientes. Atenção flutuante é, então, intenção de voltar às coisas mesmas. 

 

Mas, como já disse, a ideia aqui gira em torno do esporte mais tradicional deste país: o futebol. E pra falar das coisas mesmas do futebol é preciso lembrar que os esportes em geral, assim como as artes – que começaram a ser sistematizados e organizados na Antiga Grécia – possuem em sua raiz a intenção de representar simbolicamente a vida e suas situações. São as características do humano que aparecem nesses jogos. É o desejo de superação que se representa nas escaladas de um alpinista; os ímpetos de violência e guerra das grandes batalhas, que são vividos nas arenas que chegaram até o século XXI sob o nome de MMA; a pontaria dos caçadores e dos grandes soldados, que se manifestam nas provas de tiro ao alvo; o olhar tático das invasões, que acontece no jogo de xadrez… Do mesmo modo, são as questões psicológicas mais íntimas do nosso ser que aparecem em “Édipo Rei”, por exemplo. 

 

No futebol – essa prática relativamente recente, mas que também descende de jogos milenares – há, para além de tantas relações em comum com outros esportes, uma questão existencialista de primeira grandeza: do que somos capazes sem a nossa principal ferramenta? 

 

O fundamento do jogo, o seu ponto um, é fazer as coisas acontecerem sem utilizar as mãos. O goleiro, essa figura única em cada time, dentro de um espaço limitadíssimo do campo, é quem atesta com muita clareza essa questão existencial.

 

Sendo o único com o poder de tocar a bola com as mãos, ele só pode usar esse poder extra para dificultar ainda mais o êxito daqueles que estão privados desse gesto. Fora dessa função, longe do seu espaço de “dificultador-mor”, o goleiro torna-se mais um homem que precisa chegar aos seus fins sem as habilidades manuais – que são, como sabemos, grandes responsáveis por todo o desenvolvimento da nossa espécie.

 

Para sentir a magia do futebol é preciso ter uma sensibilidade similar a dos apreciadores de poesia. Quem não é poesia não vê poesia. Para saborear essa arte, é preciso um gosto por entrelinhas, pelo que não está escrito. Sem um tom lúdico em si, qualquer pessoa olha para o futebol e não vê nada além de um espaço onde homens tentam acertar uma esfera dentro de uma figura retangular demarcada por traves. 

 

Faz-se necessário, então, que os envolvidos no jogo estejam impregnados dessa poesia para que tudo aconteça. Uma vez imerso na poesia, inteirado dentro da arte do futebol, consumido por sua magia, seria interessante, aqui fora dos gramados, “voltar às coisas mesmas”. Esvaziar-se por um instante dessa coisa toda, lembrar dos fundamentos dos esportes para entender o valor simbólico daquilo que foi vivido entre as quatro linhas do campo.

 

Os jogadores, e também os atores e as suas respectivas plateias, estão cada vez mais distantes do entendimento da palavra representação. E, por mais talento que tenham para desenvolver suas funções mágicas, acabam subvertendo o real sentido do que fazem pelo simples fato de não saberem exatamente o que estão fazendo. 

 

Não existe nada mais corriqueiro do que ouvir um artista, ou um jogador de futebol, dizer que sua função é alegrar as pessoas. As plateias também estão acostumadas com esse discurso e vão aos jogos e aos espetáculos de arte no intuito único de encontrar recreação. Alegria e recreação são, sim, possibilidades dentro dos universos da arte e do esporte – as crianças sabem disso como ninguém! Porém, essas características de entretenimento (presentes nas artes e nos esportes) são também, mas não somente, parte do jogo.

 

Limitar os poderes da representação da vida é limitar a própria vida. É negar-se o direito de compreender melhor o indivíduo e o coletivo através dos símbolos. Se ao longo da nossa jornada evolutiva se fez necessário a criação dessas representações é porque através delas temos a chance de olhar para a vida e para a morte, para os bons e os maus momentos, para os êxitos e os fracassos, para as alegrias e as tristezas, para as virtudes e as fraquezas, para as conquistas e os novos desafios… Olhar, enfim, para toda a infinidade de possibilidades que nos cercam de modo extraordinário.

 

Esse poder de vivenciar uma vida além da vida, respeitando toda sua ambivalência, através das artes e dos esportes, é a maior chance que podemos dar àquela outra vida que acontece inevitavelmente fora dos palcos, ginásios, estádios e arenas. 

 

É com base nesses argumentos que vejo beleza e profundo valor numa derrota histórica como essa que sofreu a seleção brasileira nesta Copa, em sua própria casa, especialmente diante da Alemanha, sob o placar de 7×1. Ela equivale a um título inédito, é uma nova história para refletirmos, digerirmos e contarmos para os que virão. Tem em seu DNA alguma coisa que a oportunidade de erguer, pela sexta vez, a taça de melhor equipe do mundo jamais poderia dar a este país.

 

Tombos e fracassos – nos esportes, no campo das artes e na vida – não são absolutamente a pior parte, afinal de contas… Ao contrário, não são eles os ingredientes fundamentais disso que se chama criatividade?!

 

* Wander Bêh é músico, performer e compositor. Interessado nas investigações e pesquisas no campo das artes – particularmente em suas articulações com a Fenomenologia e a Psicologia Analítica. Cursou “Desconstruções”, curso oferecido pelo Setor de Extensão Cultural da SP Escola de Teatro, ministrado por Sergio Zlotnic, que se encerrou no dia 11 de julho de 2014.

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