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Hip-hop na linha

Publicado em: 27/02/2014 |

* por Contardo Calligaris, para a Folha de S.Paulo (27/02/2014)

 

Faço parte do conselho da organização social que administra a SP Escola de Teatro, com sede na praça Roosevelt. A escola, uma iniciativa do Estado, oferece formação em atuação, cenografia, figurino, direção, dramaturgia, humor, iluminação, sonoplastia e técnicas de palco.

 

Muitos alunos recebem bolsa durante os estudos. O vestibular é concorrido. Os recém-formados são bem-vistos pelo mercado de trabalho. As reuniões do conselho são amistosas. Em suma, está tudo bem.

 

Agora, imaginemos que, um dia, por decreto, a escola pare de “apenas” formar seus alunos e passe a capacitá-los oficialmente, ou seja, a dotá-los de um carimbo que os separe de seus concorrentes não carimbados. Naquele dia, eu me demitiria.

 

Acho ótimo que existam formações nas artes, mas nenhuma formação artística deveria se transformar em capacitação exigida para poder exercer a profissão. Você quer ser artista plástico? Curse uma faculdade de belas-artes, entre no sindicato e tire a carteira. Quer ser cineasta? Dançarino? Poeta? Escritor? Mesma coisa.

 

Como surge uma ideia dessas? É ganância de dono de escolas particulares? É frustração de alguns, que talvez procurem migalhas de poder tornando-se quadros sindicais? É vontade de que o Estado controle a vida de artistas inquietantes, distribuindo fomentos aos patenteados?

 

Para mim, dos males, o menor é a hipótese da ganância. Os outros são pesadelos da ex-União Soviética, em que os artistas de carteirinha (profissional, sindical e do partido) eram promovidos pelo Estado, enquanto os outros lambiam vitrines no frio, ou apodreciam em campos de concentração.

 

Mas a paixão por regras e regulamentos tem também outra origem. Um exemplo. Alguns andam pelo mundo carregados de regras: não podem colocar o pé em cima de uma junta, nem subir um degrau com o pé esquerdo. Esses indivíduos sofrem de um excesso ou de uma falta de regras? Curiosamente, eles sofrem de uma falta: a paixão pela proliferação de prescrições desnecessárias é quase sempre um efeito da fraqueza das leis que importam. É como se a proliferação das regras inúteis quisesse compensar o fracasso das leis fundamentais.

 

Em regra, a Constituição de um país é uma súmula de princípios essenciais. Durante a Constituinte, muitos lamentavam (com razão) que a carta brasileira fosse excessivamente extensa e detalhada; eles observavam que, no caso do Brasil, talvez a extensão do texto fosse uma tentativa (vã) de ocultar a fraqueza endêmica dos princípios.

 

Falo disso tudo por causa do projeto de lei 6756/2013, do deputado federal Romário (texto de Juliana Gragnani na Folha de 12/2), no qual é proposta a regulamentação do hip-hop. Pelo projeto, disc-jockeys, mestres de cerimônias, rappers, beatboxers (percussionistas vocais), dançarinos de break dance de rua e grafiteiros serão profissões regulamentadas, com aprendizes (a partir dos 14 anos) e estagiários (a partir dos 16), com inscrição de todos na Superintendência Regional do Trabalho e com

“cursos técnicos de capacitação profissional, em instituições credenciadas e reconhecidas pelo Ministério da Educação”.

 

O projeto promete que nenhum profissional do hip-hop colocará “em risco sua integridade física ou moral”. Ora, é possível que se torne obrigatório o uso de capacete e cotoveleiras para o break dance, mas, quanto à integridade moral, mal é preciso dizer que o projeto é o fim da alma do hip-hop.

 

Chega a ser engraçado que o projeto invoque a Constituição e os direitos humanos, pois ele restringe o básico: o livre exercício de uma prática cultural.

 

Agora, apesar de meu temperamento anárquico, pensando bem, acho que sou a favor de ao menos um curso de capacitação obrigatória. Proponho que seja instituído um curso de capacitação para candidatos a todo cargo legislativo: só dois anos, uma das matérias sendo um apanhado básico de história das ideias sociais e políticas.

 

Um seminário de primeiro ano poderia ser sobre o surgimento, no século 18, da ideia de que é preciso legislar para proteger a liberdade e os direitos dos indivíduos, cuidando para que o Estado não se meta à toa na organização das vidas e que a extensão de sua intervenção seja sempre a mínima indispensável.

 

Eu me ofereceria para dar esse seminário e preparar a apostila, traduzindo o essencial -tudo de graça, mas, infelizmente, não sei qual curso eu deveria fazer antes, para me capacitar.