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Experimento do módulo Verde por Vinícius Piedade

Publicado em: 02/06/2014 |

* por Vinícius Piedade, especial para o portal da SP Escola de Teatro

 

O AUTODESAFIO NOSSO DE CADA DIA

 

 

“Todos os acontecimentos parecem me acusar,

Me impelindo à vingança que retardo!

O que é um homem cujo principal uso e melhor aproveitamento

Do seu tempo é comer e dormir? Apenas um animal.

É evidente que esse que nos criou com tanto entendimento,

Capazes de olhar o passado e conceber o futuro, não nos deu

Essa capacidade e essa razão divina

Para mofar em nós, sem uso. Ora, a não ser por esquecimento animal,

Ou por indecisão pusilânime,

Nascida de pensar com excessiva precisão nas conseqüências –

Uma meditação que, dividida em quatro,

Daria apenas uma parte de sabedoria

E três de covardia – eu não sei

Por que ainda repito: “Isso deve ser feito”,

Se tenho razão, e vontade, e força e meios

Pra fazê-lo. Exemplos grandes quanto a terra me incitam…

…Meus pensamentos serão sangrentos daqui por diante,

Ou tudo será irrelevante,

(“Hamlet”, Ato IV, cena 4

Shakespeare)

 

 

Começo o texto sobre minha apreciação (no sentido mais amplo dessa palavra) dos trabalhos aos quais tive o êxtase de assistir no último sábado, dia 31 de maio, citando o trecho da peça do Shakespeare que expressa o máximo inconformismo perante o estado das coisas. E esse desafio ao “estado das coisas”, ou status quo, me parece ser o norte da SP Escola de Teatro. E o desafio que é colocado aos aprendizes é o mesmo colocado aos formadores. Todos acabam se desafiando, virando um autodesafio coletivo e permanente. Uma investigação artística plena e corajosa. Um não lugar ideal para a criação. A imersão no limbo. Do vazio ao todo. O risco. A busca. Cair. Levantar. Desfazer. Errar. Errar de novo. Errar melhor. Levantar. Tentar. E… Gol.

 

Cena do núcleo 5 (Foto: André Stefano)

 

O criancismo como Operador possibilitou uma pesquisa de forma/conteúdo absolutamente criativa e fora do comum. E foi nessa dimensão de autodesafio em que todos se colocaram que pudemos ver parte do que pode ser entendido como “resultado”. Não como um fim, e sim como um caminho. Um dos caminhos entre os infinitos possíveis. Que será desafiado amanhã, tal como foi ontem e é agora. O AUTODESAFIO NOSSO DE CADA DIA.

 

E quantas perguntas me surgiram durante e após as apresentações? Tantas… E algumas delas eu coloco aqui.

 

Tudo começou com “Colectomia com o coração batendo” OU “Uma tentativa de brincadeira e cantiga de roda” do núcleo 6. De cara, a iluminação e o cenário nos jogando pra um espaço imensamente maior do que o espaço cênico proporcionaria. Pude entender na hora a força que poderia ter a união de aprendizes de diferentes áreas das artes do palco. E o gênero do que se viu na encenação é inclassificável. Vi terror, humor, comédia, musical, infantil, guerra. E como é na guerra que a ação se desenrola a primeira pergunta que me veio foi como “brincar” com a guerra? Tema do que há de mais bárbaro na condição humana. A guerra nossa de cada dia? A guerra profana? A guerra santa? Crianças brincando de guerra? Ou crianças na guerra? Vítimas da guerra? Reféns da guerra? Crianças se preparando pra guerra? Os adultos que se efetuaram e se efetuam nas “brincadeiras” de guerra desde sempre. Hoje e sempre. Amém? O autodesafio de atuar como crianças também me pareceu instigante. Como o fazer sem idiotizar? As crianças e seus corpos livres. E suas quebras de ritmo. Suas quebras de linearidade. Suas quebras de lógica. O lúdico e o concreto. O que é amoral. A disposição corporal que os atores buscam. E acham. E perdem. De se perder e se achar. Brincar de ser criança brincando na guerra sobre a guerra sobre os adultos guerreando. Luz, som, atuação, ação. Lúdico na barbárie ou o lúdico da barbárie? Humano, demasiado humano. A criança de nós. Ou que está em nós. Ou que somos nós. Esse campo minado que percorremos diariamente (minado com bexigas).

 

Núcleo 7 (Foto: André Stefano)

 

Depois subimos escadas ou descemos de elevador. Ou descemos de escadas ou subimos de elevador. Não lembro bem. Lembro que entramos na peça com nome pop “Eu acho que estou sentindo aquilo que dizem ser amor”, do núcleo 7. E ri logo de cara com a narração que me preparou para a ironia crua com o que há de banal do/no dia-a-dia. Um humor daqueles possíveis de ser entendidos em qualquer lugar. Aqui e ali. Do norte ao sul. No Brasil ou em Cabo Verde. Aquilo que pode ser entendido como teatro popular moderno. Rimos da classe média e seus anseios consumistas. E calamos diante do menino que da caixa expressa a solidão contemporânea. No texto executado com a devida cara de pau dos atores ousados, o limite tênue entre o humor satírico potente e o humor banal oportunista. A atualidade das questões “SKY no lugar na NET”, “Vai ter copa?”, “selfie”, “parcelamento das compras”, é um bom risco que se corre e são questões que não ficarão datadas se sempre puderem ser substituídas. Mas o ponto alto, na minha sensação, foi a sátira escrachada com essa sociedade doente e hipocondríaca viciada em remédios e automedicações. As farmácias a cada esquina e os diagnósticos televisivos devidamente remediados. As crianças e os velhos com seus remédios pra cada possível sintoma. A pertinência dramatúrgica nesse vácuo/ruptura com a história central, cometendo a ousadia de rir do câncer (tal como já havia acontecido na primeira peça em que brincamos com a guerra), me levaram a diagnosticar – ou ao menos tentar – a problemática da família moderna. Qual o remédio? Novos e velhos tempos. Como sempre. Velhos novos tempos. Como sempre? O abraço coletivo do grupo de artistas do palco deu o tom da sensação de vitória ao fim do jogo teatral. Gol.

 

Aí pegamos o elevador. Ou descemos pelas escadas? Não lembro. Lembro que quando entramos pro experimento “Bolinha de Gude”, do núcleo 1, a primeira coisa que reparei foi a limpidez espacial em que a luz parecia dizer tudo que qualquer cenário não diria. A luz enquanto cenário.  E o modo como os atores se distribuíram pelo palco nos dois níveis (andares), já trouxe o bom acabamento do autodesafio que se iniciava. E iniciou com as respirações afobadas de crianças. Parecia vir dali uma interessante proposta para a representação das crianças, não na voz ou mesmo no jeito do corpo e sim no modo de respiração, que acabava por conduzir a voz e o corpo. E a energia dos atuadores era tal como a energia de crianças em brincadeiras sérias. Nosso brincar teatral. Acreditando em cada quase verdade. Em cada quase certeza. E a pureza das crianças logo caindo por terra quando o dono da festa diz quem é que manda. E o jogo dos poderes se inverte quando o dono do brinquedo diz as regras. Que são invertidas pelo dono do cigarro. “Quem são os pais dessas crianças?”, foi a pergunta que me veio. O tapa na cara do palhaço criança me deu uma das respostas. A mãe afobada comprando o silêncio do palhaço pai me trouxe novas perguntas. Parece que falamos de espécies diferentes, adultos X crianças. As crianças são formadas ou se formam? Formatadas? Retrato de um artista (palhaço) quando jovem. Velha nova moral. Na moral. Segura peão no pônei palhaço. As relações sociais, opressor X oprimido e os diferentes conflitos trouxeram uma vitalidade impressionante para a cena, que, apesar da intensidade, conseguiu encontrar humor. Dialética e autodesafio. Espero que entrem em cartaz e rodem o país com este trabalho.

 

Núcleo 1 (Foto: André Stefano)

 

Aí, sim, subimos as escadas. Disso eu lembro. E entramos no mundo colorido, porém, trágico da “Terapia do Imaginário” do núcleo 5. Uma daquelas sinopses que de cara interessam pelas tantas possibilidades que viabilizam. De cara, o jogo com a trilha e com os efeitos sonoros já trouxe uma proposta interessante. Uma cena infantil para adultos. Os conflitos eram todos os conflitos do mundo. O nome da peça já me conduzia ao mergulho nas questões psicológicas do menino através do seu imaginário. Um quebra-cabeça que foi se formando a cada nova solução ou briga. Um menino fragmentado e despedaçado. Depois descobrimos que estuprado. E a nossa tentativa de entender a complexidade desse ser em formação parecia guiar o mergulho. A opção por misturar falas didáticas com acontecimentos menos objetivos conduzia o espectador a construir essa personalidade do menino que acabou se corporificando num menino real no palco. Os amigos imaginários nossos de cada dia expressam a nossa personalidade sempre em formação e dizem muito sobre nossa deformação? O nosso trágico lúdico. Nossas lembranças fragmentadas? Nossa construção de verdade, de memória, de história. Nossas crianças (paridas por nós ou habitantes em nós). O que além dos nossos cinco amigos imaginários pode expressar nossas subjetividades? Nosso grito adulto? Ou nosso choro infantil? Choramos/gritamos do que? Ou pra quem? Ou por quê? Mais perguntas só uma criança seria capaz de fazer.

 

Autodesafio em várias camadas. Quatro mergulhos. Ou andares. De elevador ou pela escada. Foi especial.

 

 

* Vinícius Piedade é ator, diretor e dramaturgo

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