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CRÍTICA | ‘Berenice Morre’, da Cia. Os ZZZlots | Um e outro

Publicado em: 22/07/2016 |

Cena de “Berenice Morre”, da Cia. Os ZZZlots. Foto:Cyntia Monteiro.

 

 *Por Wander B

 

Para o amigo Sergio Zlotnic e o elenco da peça Berenice Morre

 

Um é psicanalista. O outro é sociólogo. Um se aventura como diretor teatral e dramaturgo. O outro se arrisca como ator. Um escreveu tragicomédia: a morte é míope! E o outro, como se fosse um legítimo coro grego, foi quem disse isso à plateia. Mas, quando as cortinas se fecharam e as palmas cessaram, ambos – o um que é psicanalista e o outro que é sociólogo – se puseram à disposição da plateia, que podia perguntar e perguntou mesmo. 

 

A primeira pergunta, talvez a única, foi para o outro, aquele que é sociólogo e se arrisca como ator. “Quer dizer que a morte é míope?”, perguntou aquele de óculos na primeira fila. E o sociólogo-ator respondeu com muito gosto: a morte é míope porque só nos vê de perto, e, também, nós não podemos percebê-la nitidamente à longa distância, só podemos ter alguma impressão da dita cuja quando ela resolve debruçar-se sobre nós. A resposta foi boa e satisfez a plateia, mas o ator preferiu concluir dizendo “as elucubrações são minhas, mas o texto é dele”, sorrindo para o autor.  

 

Na sequência, quem falou foi o dramaturgo, aquele que é psicanalista, que, após retribuir o sorriso do colega, pôs-se a falar sobre uma grande atriz que havia morrido há pouco e deixado como grande legado uma experiência interessante para se compartilhar naquele momento. Eu não ousaria tentar repetir tudo o que disse o psicanalista sobre a atriz, mas me atrevo a dizer resumidamente que seu discurso exaltava o potencial que aquela linda mulher – e ele realmente a achava muito linda – tinha ao interpretar o que não estava necessariamente escrito nos textos. “Por mais detalhes que o dramaturgo nos dê. Por mais rubricas e pistas que ele nos ofereça. Por mais que ele nos explique. O essencial de uma peça não se deixa capturar. Essa essência permeia o texto, nas entrelinhas. Ali, onde não sabemos o que há, é preciso que se invente” (trecho do artigo “Inventa um Cais”, de Sergio Zlotinic). Foi o que ele disse. E, de fato, era interessante dizer aquilo ao exercer o seu papel de dramaturgo, diante do ator que acabara de apresentar um texto seu: é cruel representar para o dramaturgo. 

 

Essas eram as considerações finais da noite de estreia do espetáculo, que fora mesmo um sucesso. Todavia, aquele de óculos, da plateia, decidiu retomar a pergunta – “temos mais um minuto?”. Só que, dessa vez, endereçou-a ao psicanalista-dramaturgo. “Quer dizer que a morte é míope?”. E o dramaturgo, que se via cada vez mais solicitado como psicanalista, começou a articular livremente sobre o que possivelmente o inspirara a escrever tal frase. Disse que foi uma história que lhe contaram quando ainda era um menino: 

 

– Havia uma criança muito doente, muito doente mesmo, que havia sido desenganada pelo melhor pediatra do país. Os pais, que eram russos e comunistas, ou melhor, os pais que achavam que a religião é o ópio do povo, não encontrando outra solução, decidiram apelar para um rabino, clamando pela vida da criança. O rabino disse que tinha muito pouco a fazer, mas escreveu o nome de uma pessoa desconhecida em um papel e depositou-o misteriosamente no bico de uma galinha faminta, que, sabe-se lá por que motivo, estava ali. À noite, no hospital onde se encontrava a criança agonizante, notou-se o passeio de uma senhora muito estranha, desconhecida, que passava pelos corredores com uma lista em mãos. A senhora passou atentamente em cada leito e foi-se embora. Era a morte. Ela havia sido enganada pelo rabino, que colocara outro nome em sua lista, deixando-a confusa e zangada. Talvez, a morte não seja míope; talvez, a morte seja tola, concluiu o dramaturgo.

 

Aquele da plateia apoiou seu dedo indicador em seus óculos, enquanto o dedo polegar segurava o queixo. Nesse mínimo espaço de tempo, que era também infinito, só pensava na teia complexa que acabava de ser tecida diante de si. A explicação para a frase “a morte é míope”, dada pelo ator-sociólogo, em nada coincidia com os argumentos dados pelo dramaturgo-psicanalista. Podia-se dizer que eram, inclusive, ideias opostas. Ainda mais interessante era o fato de não ser possível dizer que o ator havia subvertido o texto em uma interpretação equivocada do que estava escrito. Estava escrito que a morte é míope e, de fato, é assim que é o míope: vê mal de longe, vê melhor de perto. Nada se podia dizer também contra o dramaturgo, que, embebido na poesia, usou a miopia como metáfora para ilustrar a falta de precisão da morte, com sua longa lista de chamada aleatória e confusa. Do seu lado, algumas pessoas estavam cochichando. Eram atores. Parece que um deles disse que dramaturgo bom é dramaturgo morto.

Wander B. 

22/07/2016

**Wander B é performer, pensador e pesquisador da alma e do campo das artes.

 

Serviço
“Berenice Morre”, da Cia. Os ZZZlots*
SP Escola de Teatro – Sede Roosevelt
Praça Roosevelt, 210, Metrô República. (11) 3775-8600
Sáb., 21h; dom., 20h.  Até31/7 
R$30. 60 min.14 anos
*Sessões às segundas-feiras, às 20h, podem ocorrer mediante reservas antecipadas pela página da Cia. Os Zzzlots no Facebook

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