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Chá e Cadernos | No teatro, corpo e mente são como ator e público: coincidem

Publicado em: 23/03/2017 |

Mauri Paroni
 
Chá e cadernos – 100.0
 
Em 1995, fui convidado a ensinar direção teatral na Escola de Arte Dramática de Milão, onde havia me formado como diretor em 1988. Apesar de estar na ativa, acreditava não ter atingido o patrimônio de convicções e experiências para compartilha-las de forma pedagógica. Perguntaram-me se ensinaria interpretação. Atividade mais empírica e subjetiva, aceitei prontamente. Hoje, chegou o momento de externar convicções impossíveis naqueles tempos; o que me possibilita respeitar vozes delas discordantes. Ocasião feliz para celebrar o centésimo artigo desta seção, que terá seu nome renovado a partir do próximo.
 
I – Sobre o trabalho do dramaturgista
 
A dramaturgia de cena (função do dramaturgista) evita a aproximação maneirista com o espectador, por obrigá-lo a pensar o que presencia. A sua assimilação não foi “metabolizada” totalmente pelo universo do teatro. Como todas as inovações na história da dramaturgia, é apenas uma questão de tempo.
 
Mais que o dramaturgo convencional, o dramaturgista contextualiza a palavra usando a cena – além do papel – como suporte. Isso permite-lhe enfrentar o desafio de significar realidades irrepresentáveis do dilacerado imaginário contemporâneo. 
 
 Superamos, há muito, a associação da psicologia a uma dramaturgia literária – que se crê base do método de Stanislavski ou qualquer “método” que se imagine para supostas representações da psique. Com maior ou menor intensidade, isso prejudica a produção de textos a partir do que não é exclusivamente literário. Na outra ponta, subsiste a banalidade de estilo “performático”. É onde se necessita do dramaturgista, aquele produtor de texto que cria instrumentos formais que permitam ao ator viver ou contar, no palco, o inexplorado de si e do outro de si. 
 
Há aspectos psicológicos de nossa realidade jamais tocados pela dramaturgia por não possuírem uma forma teatralmente adequada. É o território virgem da dissolução de toda e qualquer relação afetiva  nos grandes centros urbanos. A noção de personalidade, criada historicamente na Londres Shakespeariana do século XVI-XVII, por exemplo, desagrega-se na urbanidade contemporânea. Moderno ou pós-moderno, politico ou apolítico, estruturalista, existencialista, espiritualista ou materialista que seja, se um dramaturgo decide o assunto no papel de deu gabinete, condena-se à falência artística antes mesmo de começar. Escreverá de modo a jamais integrar-se ao palco, à atuação e a uma comunicação concreta desta com o seu público.
 
É imensa ignorância que gravita em torno desse procedimento – Houve pelo menos uma ocasião em que que elaborei, como dramaturgista, a linguagem fora do material cênico advindo do papel como suporte e cheguei a ser difamado na internet, além de ameaçado de ação judicial por parte de artistas inconformados com a autoria do trabalho. Alemães trazem ao palco material urbano como respiram, como fazia Heiner  Mūller (1929-1995) – que escrevia no papel, mas reescrevia muitos textos depois de os estrear. Isso quando não era proibido pela ditadura vigente na RDA (*). Ironicamente, foi acusado na RFA de ser informante da Stasi. Nos dias de meu convívio milanês com Heiner, acompanhei-o por duas vezes ao escritório da RDA na cidade. Eu o esperava o lado de fora, num outro quarteirão. Na verdade, ele era obrigado a fazer-se interrogar. Como Brecht diante do Comitê Macarthista de atividades antiamericanas, ele enganava seus inquisidores (**).
 
II – Sobre as palavras do ator
 
“As nossas palavras giram em torno das nossas ideias porque não somos capazes de exprimir plenamente um pensamento por palavras, caso contrário o entendimento – pelo menos entre pessoas inteligentes – há muito estaria estabelecido.”
 
Arthur Schnitzler, in ‘Relações e Solidão’ 
 
 “a dimensão da vida está muito próxima da dimensão da arte; ambos confundem-se e compenetram-se, dividem um destino comum. “
 
Tadeusz Kantor  em 1985.
 
 A redução verbal, se guiada desta forma, não destrói necessariamente a tradição enquanto constrói a vanguarda. Do contrario, facilita a quebra do tabu de personagens construídos em detrimento do Humano.
 
III- Sobre o corpo e a mente do ator coincidir com a existência
 
“Teatro é essencialmente utopia, utopia em oposição à sociedade, que sempre tende para a entropia. É por isso também que a sociedade precisa do teatro: porque ele é a janela do mundo para a utopia, o lugar dos sonhos e dos desejos. (…)” 
 
Heiner Mūller (***)
 
O corpo e a mente do ator são o corpo de um ser humano, que, no momento do trabalho cênico, coincide com o mesmo corpo do ator. Não são a mesma coisa, mas coincidem. Um pianista tem o piano como instrumento. Um ator é mais complexo. Seus instrumentos são ele: sua mente, seu corpo, sua biografia, suas relações, sua existência presente. Não se trata da mimese da realidade sugerida por Aristóteles, mas da sempre fugaz credibilidade da representação – a linha de prumo do teatro.
 
IV – Por fim
 
Entendo o teatro como uma atividade pública privilegiada pela utilidade social e existencial no nosso quotidiano; desconstruo autoimposições e fetichismos estéticos engessados pela cultura de massa; parto, dos seres humanos que somos, em direção a papéis sugeridos pelos textos escritos ou demais percursos criativos. Descarto a estetização vazia. De igual importância artesanal no nosso oficio, utilizo o “não-ator”. Utilizo um único patamar para qualidade e conteúdo da representação. Em sede de representação, convoco, ao espetáculo, a participação de qualquer pessoa que entre em contato com a performance narrativa, sem distinção de tempo, espaço, classe social ou função estética. Acredito ser esta a via de um teatro com função precisa: emancipação existencial humana.
 
(*) Em 1949, surgiu a República Federal da Alemanha (RFA), capitalista, com capital em Bonn. No mesmo ano, a União Soviética funda a República Democrática Alemã (RDA), “… o negativo do capitalismo, não a alternativa a ele”, segundo Mūller), cuja capital era Berlim Oriental.
 
(**) Acusado de ter sido informante da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, defendeu-se serem invitáveis aqueles encontros e de neles ter mentido para não delatar: “Pediam-me minha opinião sobre tal ou tal assunto. Eu sabia que não falava ao Exército da Salvação, e eu devia saber quando era preferível mentir”, cf. http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1996/1/28/mais!/4.html
 
(***) cf. artigo de Marcos Renaux
 

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