SP Escola de Teatro

Bravíssimo | Maurice Vaneau por Leila V. B. Gouvêa

Introdução do livro “Artista múltiplo”, de Leila V. B. Gouvêa, para a Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (para ler a obra, na íntegra, clique aqui)

 

Ele se movimenta sem cessar, anda de um lado para o outro, olha pela janela e em seguida fixa um detalhe da roupa. Um perfeccionista obsessivo. Parece apressado, sempre nervoso, um pouco indiferente e, no entanto, nada lhe escapa. Os olhos muito azuis faíscam, contrastando com a face avermelhada; o sorriso irônico por vezes deixa escapar certa ternura. E de repente ele não hesita em manifestar um humor desconcertante, cáustico.

 

Este retrato aproximado de Maurice Vaneau, feito décadas atrás por um jornalista belga, coincide em boa parte com aquele que eu mesma, intimamente, fiz dele em 1971, quando o conheci em São Paulo. Então ele já era um nome indissociável da empreitada de profissionalização e de modernização do teatro brasileiro, impulsionada na década de 1950; já dirigira por duas vezes o TBC, sendo responsável pelos dois maiores sucessos da casa fundada por Franco Zampari; já levara à cena muitos dos monstros-sagrados de nosso palco – a começar por Walmor Chagas e Cacilda Becker, que dirigiu três vezes, a última delas no talvez maior sucesso de sua carreira de diretor, a histórica montagem de “Quem Tem Medo de Virginia Woolf?”, de Albee, produzida também por ele. Vinha ainda de pôr em cena a sua segunda ópera, O Barbeiro de Sevilha, em Bruxelas. Enfim, também ele um (discreto) monstro sagrado, já com um irremovível lastro pela Europa e pelo Brasil não apenas como diretor, mas também ator, mímico, dançarino, iluminador, figurinista, cenógrafo, fotógrafo, produtor, autor de documentários para TV e desenhista de fino traço. Homem de curiosidade insaciável, que percorrera o mundo e, à primeira vista, intimidava. Acompanhei boa parte de seu trabalho nas últimas décadas, no teatro, na dança, na ópera – e com ele tenho convivido desde os anos 1970, por laços de família.

 

Mas por um desses infortúnios que muitas vezes a velhice acarreta, o Maurice Vaneau que fui encontrar em maio de 2005, para dar início às memórias que se seguem, era já bem outro: golpeado na capacidade de lembrar, fragilizado como uma criança, mergulhado em um novo drama, sem fim e sem enredo que, este, não logrará dirigir, adaptar ou iluminar. Muitas vezes não encontrava as palavras para dizer do passado, nem em português nem em francês, as mais correntes dentre as cinco línguas que dominava até poucos anos atrás. Agora, quase tudo se embaralhava, se dissipava. Noutras vezes, contudo, era como se de repente pudesse reviver as lembranças, a ponto de como que tentar agarrar o passado com as mãos – e os olhinhos azuis voltavam a brilhar, uma nota de ternura ou um palavrão de revolta aflorava com ímpeto de sua boca ou semblante, mediante um gesto ou uma expressão. Momentos pungentes, dolorosos, que me fizeram pensar nas palavras de sua médica: trata-se irremediavelmente de um emotivo, pronto tanto a se comover com pessoas, cenas ou fatos os mais corriqueiros, como também a explodir em ira incontrolável até mesmo diante de uma ninharia. Particularidade de temperamento decerto exacerbada pelo fato de Maurice Vaneau ter vivido, na adolescência, em carne e osso, a tragédia da Segunda Guerra Mundial na Europa e a invasão de seu país pelos nazistas, eventos da história que não deixariam de marcar-lhe pela vida afora, além de haverem mutilado também a sua própria família.

 

Nas incontáveis vezes em que estive, caderno em punho, em seu apartamento na Rua Sergipe, em São Paulo, muita coisa foi dita, porém muito também ficou silenciado pelos revezes e caprichos de sua oscilante memória. Criou-se um impasse: interromper o trabalho, e conceder a um possível futuro esquecimento essa trajetória tão singularmente rica, multifacetada e importante para a história do teatro brasileiro ou, antes, embrenhar-me em pesquisas que completassem os vazios de sua fala, os silêncios de sua memória? A opção, como se vê por este volume, inclinou-se por esta alternativa – e em minha pesquisa contei, a cada passo, com a colaboração inestimável e luminosa da coreógrafa Célia Gouvêa, mulher de Maurice, minha irmã, e uma espécie de segunda memória do artista múltiplo – síntese achada por ela – especialmente no que diz respeito ao que ele realizou a partir de 1970, quando ambos se encontraram e se uniram na vida pessoal e em incontáveis trabalhos. Hoje, é ela a guardiã lúcida e abnegada de todo o vasto acervo reunido minuciosa e meticulosamente por Maurice Vaneau desde a sua estréia no palco, na companhia do Rideau de Bruxelas, em 1948, onde por sete anos atuou, dirigiu, confeccionou cenários, figurinos e projetos de iluminação para dezenas de montagens, assenhoreando-se com essa atividade intensiva de todos os aspectos, métiers e meandros da arte do espetáculo. Como o próprio Maurice Vaneau chegou a dizer, o Rideau foi o laboratório onde ele desenvolveu  as suas próprias concepções de homem do teatro total, inspiradas na vivência do dia-a-dia no palco e também em correntes ancestrais da arte cênica, como a Commedia dell’Arte, a pantomima, o vaudeville da Belle Époque, além da conexão com o inconsciente tão recorrente na tradição plástica flamenga e, claro, de toda a tradição do teatro moderno. Concepções que ele pôs em prática mais prolongadamente no Brasil, onde aportou em 1955 com uma mise-enscène que marcou época: Barrabás, de Michel de Ghelderode, apresentada pelo elenco do Teatro Nacional da Bélgica no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e no Teatro Santana, em São Paulo (o Municipal paulistano, que Maurice viria a dirigir em 1975/76, encontrava-se em reformas).

 

Desde então, Maurice Vaneau aqui realizou e dirigiu perto de 80 espetáculos, entre peças de teatro, óperas, coreografias, documentários, teler reportagens, além de algumas participações na teledramaturgia brasileira, afora os cerca de 70 trabalhos que encenou ou de que participou na Europa. Aqui dirigiu importantes casas teatrais – além do TBC e do Municipal de São Paulo, também o baiano Castro Alves e o curitibano Guaíra – e recebeu os principais prêmios das artes cênicas: Saci, Molière, APCT, APCA, Inacen e Governador do Estado, que vieram se somar àqueles que já conquistara na Europa. Aqui, onde escolheu viver até o fim de seus dias, nasceram seus três filhos e, como ele costuma dizer brincando, por ter nascido num 25 de janeiro – há exatos 80 anos – tornou-se cidadão paulistano, título que lhe foi concedido em 1992.

 

Mas não pretendo avançar mais, uma vez que as memórias que se seguem – mantidas, malgrado os revezes e os expedientes mencionados para contorná-los, no formato de primeira pessoa já consagrado por esta admirável Coleção Aplauso – dirão muito mais, e com as cores que uma vida tão fecunda, uma personalidade tão complexa e tal acervo de realizações sugeriram.

 

Devo, porém, voltar a reiterar aqui meu agradecimento a Célia Gouvêa, sem cuja preciosa colaboração esta biografia não teria vindo à luz.

Sair da versão mobile