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Vertigem segunda: Teatro, ser, presente

Publicado em: 27/04/2020 |

Mauri Paroni
Chá e Cadernos 100.27

“Não é necessário que você saia de casa. Fique na sua mesa e ouça. Nem ouça sequer, é só esperar. Nem mesmo espere, permaneça em perfeitos silêncio e solidão. O mundo irá oferecer-lhe para ser desmascarado, não pode prescindir disso, ele vai retorcer-se extasiado na  sua frente. 109”

Franz Kafka, em Aforismos de Zürau,1918 – Die Zürauer Aphorismen – Max Brod, crítico hoje esquecido a quem devemos a conservação dos seus escritos, os intitulou “Reflexões sobre o pecado, a esperança, o sofrimento e a verdadeira via” – “Betrachtungen über Sünde, Hoffnung, Leid und den wahren Weg”.

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Em solidão, assisti a “Todos os Sonhos do Mundo”, dirigida por Rodolfo García Vázquez, em temporada digital no Instagram de Ivam Cabral. Digital porque a pandemia pôs todos em casa.

Poderia ser vista pelo story, mas assistir ao espetáculo em seu “ser ao vivo” mantém o aspecto teatral tanto quanto o café coado diante da gente é mais real que o café solúvel. Ambos podem ser bons, há quem prefira solúvel, mas são duas coisas diferentes que não se substituem; assim como não o vi ao vivo, e o sabor de  assistir ao que diz, no contexto presente, aqui, é muito mais complexo e real.

Duas frases ali mudam o sabor da dramaturgia – cito esses dois exemplos: “Vamos ‘aparecer’ no radio”; e “o tempo de ser feliz não volta nunca mais”. Fica quase imperceptível,  mas terminar com a referência “estado de calamidade do amor”  transforma o que acabamos de assistir num teatro  inovador,  por transformar em vida o que já foi. Lembrei-me do contexto dramático de meu linfoma, curado. Em Kreuko, de Beto Brant e Cisco Vásquez, vivi aquele horror em um monologo. Mas não era teatro, era cinema; não havia o outro real, vivo, o que testemunha a verdade vivendo a ficção, a memória, a narração, como em “Todos os sonhos do mundo”.

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Definição clássica na fenomenologia: ser é ser em relação. Fora da relação não se concebe o ser. Teatro é ser, é relação viva, de acordo com o que aprendi na moderna tradição ítalo-francesa ensinada por Silvio D’Amico – que ajudou a revolucionar o teatro brasileiro do pós-guerra. Vê o teatro como serviço publico e, como tal, revive a metáfora do carro de Téspis em cima de túmulos (o ancestral do palco), ao bradar “eu sou Dionysos vivo”; um desastre político para tirano ateniense de turno: Sólon. Este, indignado, esbravejava “como pode professar o despudor de mentir em publico”? Desafiar a verdade em cumplicidade com a plateia para suspender conscientemente a desconfiança É teatro ancestral que transmite a eternidade da vida. Se pensarmos que não nos lembramos da “verdade”, mas apenas nos lembramos da sua lembrança muito mais que termos vivido o fato, estaremos diante de um espetáculo que supera a metáfora que título sugere: o sonho.

 

Há a predileção de sua mãe, analfabeta e costureira que fazia os melhores sonhos do mundo, apaixonada pelas vogais,  tesouro do teatro mediterrâneo, veiculo maior para  a transmissão da emoção humana. Nessa tradição milenar, é a mãe quem transmite a cultura para a próxima geração, via seio, alimento e palavra, é quem matem vivas as emoções humanas.

Há, sobretudo, o fato que o próprio evento É a essência do sonho que É – mais ainda do que representa: Hoje, a testemunha dos dramas que conta de sua casa – Ivam – ensina e dirige esta SP Escola de Teatro.  Por ser ao mesmo tempo espetáculo, palco, casa e escola ligados à uma mesmo ser  humano – igualmente o SÃO todos os que nela trabalham -, É um centro de produção de cultura; Um sonho real – escolas de teatro são centros de produção de cultura na exata medida em que preparam estudantes a multiplicarem exponencialmente o conhecimento nelas cultivado,  ainda e se somente de números tratarmos. Em poucos anos, o efeito disso se fará presente na história, como foi a política do ensino do canto orfeônico (do ministro de Getulio Vargas, Gustavo Capanema) para um ciclo excelente da música popular brasileira, como foram os investimentos em educação e cultura nos países hoje chamados “tigres do oriente”, como foram as escolas nacionais de teatro do segundo pós-guerra europeu/mediterrâneo/norte africano.

Da mesma forma, o contexto da pandemia, concomitante, deixa a marca definidora. O drama pessoal se intersecta com o drama do outro, com o perigo da morte, com a afirmação da vida e a  ressurreição desta, em ritual estético de tipo grego/africano, de ritos orais, transmitidos através de gerações, inspirados por religiões mas  separados pelos eternos atores que ousam desafiar trágicas divindades, de Ésquilo a Zeus e  Exu, de brigas entre heróis e  deuses como a lendária fundadora do Japão, Amaterassu – feminino e artista Sol nascente – só saiu de sua caverna inspirada pela “banda” divina e não pela truculência de seu irmão.

Diante desse teatro  sobre – na – própria existência, à menção de seu falecido irmão amado que, artista nato, não teve  tempo para abrir seu restaurante, ecoa a progressão vergonhosa de uma inteira cidade para o preconceito generalizado – como em A Visita da Velha Senhora, do suíço Friedrich Dürrenmatt (1921-1990); teatro realizado e transmitido do corredor de casa, do confinamento a todos imposto pela pandemia inclemente, de uma dramaticidade entrópica que traz dramas do Outro – como a linda Jane debochada pela cidade (lembra a heroína de A Excluída, de Pirandello); ou da garota Lila, estuprada e obrigada a levar a consequente gravidez até o fim, o que gerou um menino hoje pesquisador de inteligência artificial no Vale do Silício – lugar de origem da tecnologia para o preciso evento teatral que o narra. Estamos, pois, no carro de Téspis, na carne viva e palco da própria existência: arte que desfaz a absurda falácia do Big Brother da dita política feita nas redes sociais e televisões.

Quem faz teatro emociona-se pelo teatro; mas quem não faz, ri do drama de si que intimamente patrocina. Uma simples estória posta ali, no computador, no telefone, no éter, no ar que, de artificial por tecnologia, volta-nos ao tempo pré-industrial, mãe e pai do teatro.

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Já que o evoquei, deixo a Pirandello um comentário final: “Penso que a vida seja uma comédia muito triste, posto que trazemos em nós, sem meios de saber como, por que, ou de quem, a necessidade de enganar-nos continuamente com a espontânea criação de uma realidade (cada um a sua ed jamais a mesma para todos), que aos poucos se revela vã e ilusória. Quem entendeu o jogo não consegue mais se enganar; entretanto, quem não consegue enganar a si mesmo não pode mais ter gosto nem prazer pela vida. Assim é. A minha arte é eivada de compaixão amarga por todos aqueles que se enganam; mas esta compaixão não pode não estar acompanhada de uma feroz irrisão do destino, que condena o homem ao engano. (…)”.

Amarga, porque de uma guerra se trata, mas é compaixão. Essencial se escolhermos a continuação da civilização.

Silvio D’ Amico, Luigi Pirandello, Andreina Pagnani, Renato Simoni e Jacques Copeau, 1933