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Thierry Salmon – Uma pedagogia (I)

Publicado em: 19/11/2019 |

Chá e Cadernos 100.15

Mauri Paroni

O belga Thierry Salmon (1957-1998) é pouco conhecido no Brasil. Encenador-pedagogo extraordinário, ele foi o criador do que chamam circulo neutro. Foi ocasionalmente utilizado segundo um  senso comum enquanto “método” de “construção de personagem”. Por isso interpelado, sugeri ao Professor Eduardo de Paula que indagasse sobre o  trabalho de Thierry Salmon e a dramaturgista Renata Molinari. Um extenso  trabalho desenvolveu-se em seguida. Com nossa tradução, curadoria e organização, pode ser integralmente baixado aqui:

http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunhos/issue/view/1804

Vale a pena ler a totalidade da revista, com intervenções valiosíssimas de outros importantes colaboradores na trajetória de Thierry.  Ê  de grande valia a estudantes  e profissionais que trabalham na dialética e fluxo do teatro enquanto existência.

O dossiê INCURSÕES NO TEATRO DE THIERRY SALMON – “porque o efêmero também deixa marcas”,  publicado na Revista Rascunhos – Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas  – da Universidade Federal de Uberlândia, traz luz sobre sua atividade. Publicamos algumas partes também nesta coluna Chá; por desnecessário acenar que o tipo de conhecimento teatral produzido na SP Escola de Teatro será muito enriquecido por uma pratica teatral e pedagógica tão próxima a nós. Segue, em quatro apontamentos, a publicação das introduções minha, de Eduardo De Paula, de Renata Molinari e esta breve entrevista com Thierry.

[ Para quem ouve em italiano, há este programa radiofônico bastante exauriente:

https://www.raiplayradio.it/audio/2018/03/WIKIRADIO—Thierry-Salmon–aac0be64-a6e6-4e95-bc53-84e82153ebca.html ]

 

É necessário que o real penetre no espetáculo

entrevista com Thierry Salmon por Fabienne Verstraeten; Alternatives Théâtrales, em  janeiro 1997

tradução de Mauri Paroni e Eduardo do Paula

 

(1) Fabienne Verstraeten – Você está ensaiando por um longo período no exterior, com atores de nacionalidades e línguas diversas. Em que essa particularidade influencia em seu trabalho?

(2) Thierry Salmon – Sempre me agradou ensaiar no exterior. Trabalhar fora é uma fonte de criatividade. Permite a mim e aos atores estarmos em imersão total e em permeabilidade com o ambiente. Aproximar-se de um texto de modo geográfico é um modo de alimentar-se concretamente e criar uma relação com o real. Estou sempre buscando esta penetração do real no espetáculo. Busco estar em estado de permeabilidade para recriar, no trabalho, as [mesmas] condições do texto.

Neste momento estou fazendo um laboratório sobre texto de Eugène Savitzkaya, “A loucura originária”[1], que fala da cidade de Liége depois de um terremoto, um cataclismo enorme. Alguns dos atores participantes do laboratório, sejam franceses ou italianos, não conheciam essa região. Levei-os então à Liége, passamos pelos jardins de Savitzkaya, e os fiz trabalhar na velha fábrica de Val St-Lambert em lugares abandonados, entre ruínas, porque é um pouco o tema do texto.

(3) F. V. – Você nunca ensaia em lugares neutros, em um lugar que não tenha relação com o seu projeto?

(4) T. S. – Mais que o lugar de ensaio, para mim é o ambiente que importa. Fizemos os ensaios de De Passions, a partir de “Os Demônios” de Dostoiévski, em São Petersburgo, onde ficamos seis semanas; a vida ali era exaustiva. Quando voltamos a trabalhar em Módena, na Itália, nos encontramos em uma cidade muito burguesa, que não tinha nada a ver com o texto. Isto fez com que os atores precisassem abstrair o ambiente – e isso não foi fácil. Na montagem para o espaço de Modena não temos nenhuma relação com o externo. Mas, para mim, o espetáculo, os ensaios, precisam ter uma relação com o externo.

(5) F.V. – Normalmente você apresenta ao público as etapas intermediarias do trabalho. O que isso significa para você?

(6) T. S. – Isso varia de acordo com o projeto. Para “As Troianas”, o calendário dos ensaios era muito preciso. Várias etapas dos trabalhos estavam previstas, era também um modo de dar um ritmo ao trabalho, de preparar algumas partes do texto, alguns temas, depois colocar tudo isto junto durante o último mês de ensaio, quando os três grupos de trinta e quatro atrizes estavam finalmente juntos.

Um ano ou dois, antes de apresentar o projeto, eu havia realizado um estudo preliminar que se chamava Prémisses aux Troyennes – foi quando decidi que seriam apenas atrizes.

Para Des Passions, fiz um primeiro estudo em Módena. Tivemos que apresentá-lo em três lugares distintos, adequar o trabalho a cada novo espaço: um lugar gigantesco, um corredor de uma velha clínica psiquiátrica abandonada e, finalmente, um pátio de um convento. Todo esse trabalho era demais para apenas um estudo.

Vassiliev[2], que tinha visto este primeiro estudo, propôs-me trabalhar com os seus atores em Moscou. Ficamos três semanas, depois trabalhamos outras três em Módena. Passaram alguns meses antes que iniciássemos os ensaios do espetáculo propriamente dito. Enfim, partimos para São Petersburgo onde dois atores de Vassiliev uniram-se a nós.

Assim, ficamos quase dois anos trabalhando sobre Des Passions. Era tempo demais dedicado aos mesmos personagens e ao mesmo universo. O roteiro estava exageradamente longo.

Para o projeto sucessivo, Faustae Tabulae, decidi trabalhar de modo mais curto; empreguei três semanas e disse a mim mesmo: nunca mais!

 

(7) F. V. – Quais são os exercícios que propõe aos atores durante os ensaios?

(8) T. S. – Trabalho muito com a guia[3], num exercício que aprendi com atores que tinham trabalhado com Grotowski. Os atores saem pelas ruas, em lugares públicos, vão trabalhar no externo, no real. Inventam histórias, lembranças de personagens, a partir daquilo que escutam sentem e veem. Este exercício é sempre feito em dupla. A guia ajuda a não confundir. Quando peço a um ator para imaginar um personagem, uma situação, frequentemente é um processo mental. Mas deve ser uma percepção do externo, uma experiencia vivida. A guia conta o que aconteceu; existe então interação entre os dois atores; é também um trabalho de escuta entre eles. Às vezes, peço para que os próprios personagens saiam à rua. Os atores vivem o mundo externo através da lógica do personagem. Se, no trabalho de construção do personagem, um ator diz que seu personagem gosta de passar horas em um café, o ator-personagem transcorrerá a tarde toda no café. Neste exercício, os atores avaliam o seu personagem em relação à realidade, o personagem torna-se uma pessoa real mais que um personagem teatral, exagerado, caricatural.

Em São Petersburgo, tínhamos preparado várias sequências na sala de ensaios, depois fomos trabalhar fora, em lugares diversos, nos quais os atores improvisaram. Isto resultou em coisas incríveis.

Eu tinha encontrado um lugar sublime, uma grande plataforma de concreto que emboca no mar, um espaço muito geométrico. No dia em que fomos ali, o mar estava muito agitado. Os atores colocaram em jogo as suas cenas, traduzindo-as em função deste espaço, desta grande abertura. Eles realmente dominaram esta possibilidade de ampliar e diminuir, de entender o espaço, de usá-lo perfeitamente. O prosseguimento do desencadear desses elementos assumiu um caráter dostoievskiano, filosófico, universal. Tinha sentido verdadeiro e alguma coisa restou.

 

O período de apresentação tem ligação com o período de ensaios.

Não se trata tanto de corrigir, mas de injetar novos elementos que impeçam o espetáculo de se congelar.

Existe ainda o prazer da busca, mas diante do  público, desta vez

 

(9) F. V. – Em que esses exercícios dos ensaios se transformam depois do trabalho? Encontramo-los no espetáculo?

(10) T. S. – Esses exercícios deixam traços na atuação, se não num nível técnico. A cena defronte ao mar deu uma nova dimensão ao espetáculo. A tournée de Des Passions foi longa, apresentamos em vários lugares distintos. Mas foi ali, em frente ao mar, que os atores conquistaram um domínio definitivo do espaço. Tinham criado um passado: após colocarem-se no imensamente grande, podiam facilmente deslocar-se a um espaço menor. Nas apresentações, o ator que interpretava Chatov apoiou-se na vivencia dessa experiência. Num determinado momento, dizia: “Já contei a vocês sobre esta praia em São Petersburgo, lembram?” E isso forçava os outros atores a recordarem a situação que tinham vivido.

(11) F. V. – Além de envolver os atores no espaço, o que pede aos atores nos ensaios, em que insiste?

(12) T. S. – Os atores devem ter suporte para a atuação a partir do concreto, não de uma representação mental. É preciso que o estado nasça do diálogo, que quem escuta esteja em um estado provocado por aquele que fala, que um ator possa ajudar o outro a atingir o estado requisitado por aquele: se um personagem deve chorar, aquele que grita com ele tem uma enorme responsabilidade, deve ajudá-lo, precisa querer fazê-lo chorar.

Consenso e cumplicidade são, então, essenciais. Se dois atores trabalham verdadeiramente juntos, falam-se e dialogam realmente, estarão também em cumplicidade com o público.

Estou sempre em busca de uma compreensão além das palavras. A maior parte dos atores relacionam o teatro à palavra e existem apenas quando falam. Muitos se preocupam com o número de linhas que têm para falar e pensam que o texto pertença a eles. Quero romper este pertencimento do texto; compartilho o texto, que pertence a todos!

É também necessário que o espetáculo seja permeável aos incidentes. Em cena, tudo é oportunidade, possibilidade, sorte. Um pássaro canta na sala de espetáculo? Mais que continuar a apresentação como se ele não estivesse ali, os atores devem escutá-lo, usá-lo para colorir o discurso.

(13) F. V. – Nunca aconteceu de um incidente interromper um espetáculo?

(14) T. S. – Nos tempos de Fastes-Foules, um dos meus primeiros espetáculos, os incidentes aconteciam sempre: um ator levava uma tijolada na cabeça, outro sangrava, mas nem por isso parávamos a apresentação. Um dia, precisei levar um ator ao hospital, mas o espetáculo prosseguiu, fomos até o fim. Era necessário usar este erupção da realidade e não os dissociar do espetáculo.

(15) F. V. – Antes de começar a trabalhar com os atores você prepara antecipadamente muitas coisas? Como é o primeiro ensaio? Desenvolve um trabalho dramatúrgico com os atores?

(16) T. S. – Primeiro trabalho sozinho. Leio, assisto filmes, escuto algumas músicas… Busco colocar de lado alguns desejos. Espero. Não quero construir nada até que não me encontre diante dos atores. Antes de ver os atores no espaço de ensaio, não sei se será possível um casamento entre as minhas ideias e eles. No início dos ensaios, nunca faço um trabalho de mesa. Iniciamos o trabalho sobre os personagens diretamente com a prática.

(17) F. V. – A construção do personagem é uma etapa importante no teu trabalho. Como encaminha esta questão sobre o personagem, via psicologia?

(18) T. S. – A construção do personagem tem sido uma das bases do meu trabalho. Procedo com uma série de perguntas com o fim de obter respostas automáticas dos atores. É um longo trabalho que permite a construção de uma biografia, para atingir um profundo conhecimento do personagem. Depois chega a fase de construção física: como o personagem se porta, senta, move etc. Tudo deve ser vivido fisicamente, do contrario a atuação fica artificial.

Essa fase de construção das personagens é longa, mas quando vamos para as improvisações, prosseguimos mais rapidamente pois os atores realmente possuem uma base adquirida. Quando iniciamos uma improvisação ali já há teatro, existe alguma coisa a considerar-se imediatamente, há presença de cena no espaço.

Os personagens são também um filtro: conduzido pelo seu personagem, o ator pode ir em direções nas quais não iria sozinho, um personagem faz coisas que um ator não faria.

Mas esse trabalho sobre o personagem tem seus limites. Alguns atores, em certas ocasiões, advertiam-me que os seus personagens nunca teriam dito ou feito isto ou aquilo. A lógica do personagem pode tornar-se restritiva. Devemos ir além dos personagens.

Às vezes, uso as perguntas para alimentar o conhecimento dos personagens. Neste jogo de perguntas e respostas, os atores intervêm sobre cada personagem. Este não cresce sozinho, é um resultado das influências. Cada pergunta é também uma proposição da parte daquele que a faz. Nas improvisações, se os atores sabem que um personagem não gosta de água, por isso mesmo o provocam e, jogando um copo de água em seu rosto, tal gesto terá uma força muito maior.

(19) F. V. – Quando você passa à construção do espetáculo, sente tal etapa como um luto em relação a alguns momentos dos ensaios que devem ser abandonados?

(20) T. S. – A fase de construção é a da eficácia: eu sou mais diretivo, os atores não têm mais direito à palavra. Não têm mais o mesmo espaço de liberdade. A construção do espetáculo é um espaço menos democrático…

A essa fase de construção sucede uma última etapa na qual os atores encontram as suas marcas. O espetáculo pertence a eles novamente; no espetáculo os atores recebem de novo todos os seus direitos.

(21) F. V. – Você assiste a todas as apresentações?

(22) T. S. – Se apresentamos apenas cinco ou seis vezes, estou presente a todas as noites.  Quando não, gosto de me preservar. Mudo frequentemente, mudo algumas coisas no curso das apresentações, proponho estímulos iniciais diversos para que os atores estejam no palco sempre em estado de criação. O período de apresentação tem ligação com o período de ensaios. Não se trata tanto de corrigir, mas de injetar novos elementos que impeçam o espetáculo de se congelar. Existe ainda este prazer da busca, mas desta vez diante do público.

(23) F. V. – Geralmente, você busca uma relação particular com o público. Rompe com a quarta parede propondo uma circulação entre o espetáculo e o público, como em Agatha[4], no qual os dois personagens eram muito próximos aos espectadores.

(24) T. S. – Busco sempre incluir o público. Em Agatha, a relação com o público era ambígua: o texto falava da intimidade entre um casal de jovens o irmão e a irmã em uma cidade vazia; fazíamos crer que tudo estivesse vazio enquanto a sala de espetáculos estava repleta de espectadores. Então pedi às atrizes que falassem olhando para as pessoas. Queria que o público não se sentisse completamente estranho. É através do olhar que o espectador pode entrar no ator.

Pedia um olhar preciso, um olhar humano. A atriz que interpretava a personagem da moça deveria buscar, entre os espectadores, um homem que a agradasse. Observava o público e, com o olhar, procurava “um homem que pudesse amar” para provocar o seu irmão que, por sua vez, talvez, também desse uma olhada agressiva para o tal homem.

Assistir a um espetáculo deveria ser uma experiencia para o espectador. O espectador deve sentir que está, também ele, viajando.

Peço para que o espectador faça um esforço, por exemplo: deixo brechas na criação, para que assim possa inserir-se. Não tenho mais vontade de contar histórias, prefiro que o espectador faça um percurso durante o espetáculo, que dois espectadores não vejam a mesma história.

O teatro é um lugar de resistência, um lugar que permite viver de maneira diversa. Mas nem sempre tento transmitir esta necessidade: o teatro é, normalmente, necessário àqueles que o fazem não a quem o assiste. É uma constatação dolorosa, tem-se então a impressão que a tarefa seja em vão.

[1] Tradução livre do original La folie originelle. [NT]

[2] Anatoli Vassiliev, diretor russo. [NT]

[3] Tradução livre da palavra italiana guida. [NT]

[4] A. da Agatha, a partir do romance Agatha, de Marguerite Duras; Édition de Minuit. Espetáculo criado na Itália, em 1985. [NT]