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Thierry Salmon, demiurgo e pedagogo

Publicado em: 02/12/2019 |

(uma introdução para o publico brasileiro)

Chá  e Cadernos 100.17

Mauri Paroni

Narrarei a experiência pessoal com o encenador e pedagogo através de uma visão, entre apaixonada e racional, do modo de trabalhar de Thierry. (*)

***

A primeira prova do segundo ano do curso de direção era uma apresentação feita com atores profissionais, contratados pela Escola de Arte Dramática de Milão. Apresentamos algumas cenas do texto As Calcinhas de Carl Sterheim o expressionista alemão do começo do século XX, comedia desacralizadora para a época que contava a história de uma esposa tão distraída a ponto de perder a suas calcinhas num desfile das tropas do Kaiser.

Estava muito ansioso por ter discutido severamente com a atriz, que insistia em criar a distância falsamente brechtiana usual entre artistas comuns diante de temas parecidos. Aquilo não passava do falso profissionalismo de grande parte do teatro convencional e não convencional. O seu companheiro de palco também padecia do mesmo mal, porém não tinha o embaraço ideológico e se deleitava num risinho não necessariamente correto para os padrões comportamentais contemporâneos. Tomei o problema como força motriz das tensões entre as personagens; não eram, porem, tensões somente entre as personagens; eram tensões pessoais entre os atores. Tal jogo acabou funcionando muito bem nas apresentações e a forma, a direção e as interpretações foram aprovadas pelos meus examinadores – entre os quais a nossa já idosa tutora Mina Mezzadri, a primeira mulher a ser diretora teatral na Itália – uma excelente ensinadora de teatro convencional.

Na plateia do segundo dia havia um professor externo à escola, do qual eu deveria ser assistente, que dirigiria a apresentação do curso de atores: Thierry Salmon. Quase não havia diferença aparente entre nós, alunos, e ele, diretor, a ponto de ter sido confundido pela secretaria do diretor da escola como um jovem repórter que esperava para falar com o grande diretor belga… Thierry Salmon. Este fazia grande sucesso com o espetáculo A. de Agatha, a partir do romance de Margheritte Yourcenar.

 

Silvia e Luisa Pasello em A. De Agatha, direção de Thierry Salmon, foto de Maurizio Buscarino.

Era, de fato, um impressionante espetáculo interpretado por Silvia e Luiza Pasello, duas gêmeas na vida real que atuavam “sem atuar”. Esta era a marca de todos os seus espetáculos, a essência de um trabalho de cena diante do publico.  Um Terencio contemporâneo – Homo sum: nihil humani a me alienum puto: Sou Homem: nada do que é humano me é estranho -; qualquer espetáculo de Thierry dialogava pessoalmente com o seu publico enquanto individuo, partindo do nível individual do ator, muito distante daquilo que poderia se pensar como uma mistificação da identificação da pessoa do ator com igualmente ”personagens” mistificadas. Para ele, personagens teriam mais a ver com a literalidade de um realismo raso, baseado no papel como suporte maior da presença cênica. Ele as baseava nas gêmeas. Impressionava a presença humana em cena, maior qualidade de um teatro possível que parte da ideia tão bem definida e sintetizada por Terencio. Estendo essa analogia a tudo o que vi de e com Thierry em trabalhos, ensaios, espetáculos, breves convívios. Nada do que era humano era alheio ao ambiente onde acontecia o espetáculo criado por Thierry.

Com rosto jovial, compenetrado, severo e delicado, ao comentar a cena, Thierry não se comportou “tipo professor”. Um pouco testando como eu era pessoalmente e não como se eu fosse seu futuro aluno assistente, disse, apenas: “ótimas cenas do ponto de vista do que se espera em teatro convencional, mas as energias os atores são diferentes entre si, são diferentes do publico, são diferentes de você… quando eu digo diferentes, entendo como desarmônicas…  ali ninguém fala a mesma língua, apesar interpretarem o mesmo texto; os atores fazem o papel de atores, o publico faz papel de publico e você faz o papel de aluno-diretor. Ansiosos todos, só você está sinceramente ansioso. Todos ali mentem tranquilamente procurando uma verdade. Poderiam ser sinceros procurando uma mentira. Poderiam ser verdadeiros. Poderiam ser. Alguma coisa eles são…, mas não deu para ter uma ligação real e profunda com o que eles são. O que eles são?”.

Lembrei-me daquilo que tinha visto dele. Aquilo gerou em mim uma imensa curiosidade, seguida de um infinito medo de ter errado tudo na vida teatral que havia projetado, de ter errado tudo o que estudava.

Sem perceber, eu tinha medo do que efetivamente aconteceu depois de alguns meses quando começamos a trabalhar juntos com os atores. Uma ruptura geral. De papeis, de personalidades, de personagens, de funções. Em menos de duas semanas, naquela escola da tradição italiana, ainda que contemporânea, tudo o que havíamos aprendido perdeu qualquer função definida. Todos nos alunos e até ele, Thierry, sabíamos que a organização dos mecanismos expressivos estavam totalmente desarrumados e precisavam ser reconstruídos.

Logo ao primeiro dia de trabalho com os atores foi-lhes sugerido escolherem uma personagem de um texto de Tennessee Williams diferente para cada um. Essas personagens, grandes ou pequenas, não importa, acabariam por serem colocadas face-a-face, duas-a-duas, em relação também aos demais atores que faziam o papel de publico – naquilo que chamam de Círculo Neutro.

Era um círculo desenhado com giz no chão, no qual ingressavam uma ou mais pessoas e que delimitava o espaço de ação da(s) personagem(ns). Ele tinha quatro entradas representadas por quatro riscos curtos, perpendiculares à linha que delimita o círculo. No centro, havia um X indicando onde a personagem deve posicionar-se com rigorosa precisão.

Visto de cima, o círculo apresentava o aspecto de um alvo, para o qual o público fazia perguntas e comentários diretamente ao ator. Este deveria entrar por uma das entradas do círculo em absoluto silêncio, posicionar os pés entre as linhas do X no centro, manter sua postura firme e simétrica, e esperar. O público perguntava o que quisesse. A partir desse momento ele estaria sob inquérito, deveria responder ao público diretamente. Para responder, o ator deveria ter alguma figura em mente, contando com informações documentais da personagem, que poderiam ser reais ou não – mas deveriam ter objetividade jornalística. Só assim ganhava-se credibilidade.

Era uma atividade que via o ator como suporte do texto onde, através de seu corpo e mente, se desenvolvia a gramática verbal do espetáculo – e não na mente do autor. Nas primeiras fases do trabalho, o ator deveria responder às perguntas e comentários apenas verbalmente, sem gestos, sem expressões faciais, sem entonações que revelem emoções, sem maneirismos – o que importava é que o texto escorresse do si.

Essas perguntas, ao longo do processo, ajudavam a definir a idéia que o ator criava da personagem, a idéia que o público teria da personagem, a idéia que a personagem teria de si e a idéia originalmente concebida pelo dramaturgo do que seria essa personagem. Estes são planos que coexistiam, mas não necessariamente deveriam estar na mesma linha lógica. Esse trabalho de dissecação ajudava na exposição (durante o espetáculo) dos signos mais paradoxais com limpeza, utilizando a metalinguagem cênica.

[A diferenciação dos limites entre realidade e ficção será sempre possível se partimos do pressuposto de que os eventos e descrições inferidos pelo dramaturgo não esgotam a existência das personagens e que, como em Pirandello, uma vez criadas, as personagens tomam seu rumo próprio e inevitável – como que em um desdobramento, num movimento de inércia. É a partir da exposição das contradições e pulsões pessoais de cada personagem, emergidas ao longo do procedimento, que desconstruímos certezas falsas e pré-existentes.]

Isso foi fundamental para o crescimento expressivo dos atores, porque lhes retirava o “escudo” atrás do qual se escondiam utilizando-se de uma exacerbação virtuosa da personagem. Somado à evidência de que atuar é, antes de qualquer coisa, mentir, tornava-os conscientes da necessidade da busca de uma linguagem baseada na credibilidade e não na verossimilhança.

Eram tênues diferenças entre seres reais e seres dramatúrgicos: “Ah, ela vai dizer ou fazer isso por estar na trama” – o que seria certo do ponto de vista da dramaturgia convencional. Mas… Colocava-se o que se queria investigar dentro do círculo, e submetia-se humildemente ao que ocorresse na relação proposta naquele espaço. O ator, então, tornava-se uma máquina de imaginários e, a partir daquele momento, dialogava com seu público ou com os seus colegas. (Descrevi e utilizei esse procedimento em meu livro e espetáculo, em coautoria com Ziza Brisola, “Aqui Ninguém é Inocente”).

Dentro daquele ciclo diário, os atores chegaram a estapear-se; as mulheres a colocarem-se contra os homens de forma quase feroz; isso mais tinha a ver com nossas personalidades e um pouco menos com as figuras de Tennessee Williams. Eram figuras explosivas, dramáticas e humanas, de tensões juvenis de alunos-atores confusos com tanta ruptura e tanta anticonvencionalidade, numa escola de tradição italiana. Foi a base de um o ensaio publico, que eu acredito que tenha sido um dos melhores espetáculos do qual eu tenha participado – foi muito além de um ensaio.

Enquanto aluno de direção, frequentava matérias técnicas de manhã; de tarde, fazia perguntas aos atores dentro do circulo, até criar uma figura de um diretor que não chegaria  a definir como temperamental: diria extremamente malvado e bruto, a partir do momento em que Thierry me colocou diante de uma planche, a mesa que no teatro francês convencional coloca-se no meio da plateia da qual seguir os ensaios de palco que eles chamam de repetition, com um assistente que confere cada palavra do texto escrito, à moda de Jacques Copeau.

Os atores respondiam as perguntas, do publico ou entre eles, odiando-se, estapeando-se, beijando-se, batendo-se, amando-se em silencio longos e tocantes quase sem movimento. Para meu desespero de diretor tradicional, nada batia com o texto; para ficar mais desesperado ainda, tudo era exatamente como aquelas personagens de Tennessee Williams estavam desenhadas no papel e nas palavras escritas. Era um paradoxo absurdo, impressionante, pesadelo de qualquer “profissional” do teatro, humanamente incontrolável, ingovernável. Mal se pode imaginar o que deveria fazer um iluminador, um cenógrafo, um figurinista convencional diante de tal quadro aparentemente caótico; e diante de uma tão paradoxal harmonia.

Somente gênios chegam a criações vertiginosas que não se comandam por serem humanamente devastadoras, geradoras de um desconcerto publico irrepetível, mas alcançável. Dentro de mim, por mais que fosse um tirano demiurgo, eu não percebia, no papel do diretor, a funcionalidade dessa estupidez violenta. Isso contrastava com meu sentimento de profunda alegria irônica da corrosividade daquilo que estava vivendo em conjunto com meus colegas, alguns amigos no elenco, diante de desconhecidos do publico, quase sempre composto por gente “antenada” no teatro anticonvencional da cena italiana – que era talvez uma das mais avançadas da Europa dos anos 80. Quanto mais eu repreendia os atores, mais eles destruíam a convencionalidade, mas eles eram eles mesmos, paradoxalmente mais censurados e filtrados pela própria literalidade vertiginosa do dramaturgo Thierry Salmon. Nada mais era tão Tennessee Williams e, paradoxalmente, tão “atores” como aquilo.

Por duvidoso, faz-se necessário lembrar o modo raso com que se conhece o trabalho no círculo neutro em algumas produções. Foi empregado qual metodologia para “construção de personagem”; num triste jogo pseudo-stanislaviskiano. Não entrarei no raciocínio teórico-abstrato da questão – inútil armadilha polêmica – mas refletirei sobre algumas experiências com atores e textos trabalhados no período em que tive direto contato com Salmon. Para ser assertivo, utilizarei as poucas fotos que tenho daquele período de 1986 e 1987.

Thierry Salmon, Paola Bigato/Laura, 1986, foto Maurizio Buscarino

Esta foto mostra Salmon dando indicações de direção e dramaturgia do ator (como costuma-se chamar no Brasil), onde ele trabalhava com a atriz Paola Bigato, que trabalhava sobre Laura, de Zoo de Vidro, de Tennessee Williams. Nota-se o olhar trágico de Thierry, a indicar o sofrimento humano da situação experimentada no centro do círculo. Um rosto trágico, ou dramático, ou real no sentido lacaniano do termo: indefinível do ponto de vista narrativo, somente possível de ser vivido. A mania metodológica do teatro convencional diria que os atores ou o diretor estariam “identificados com a personagem”. Outra mania, esta do teatro dito anticonvencional, diria que “não é teatro, mas performance”.

Serei propositalmente insolente ao dizer que não é nenhuma dessas picaretagens. Trata-se somente de fazer com que a experiência vital e existencial do ator coincida com o pretexto sugerido pelo texto escrito, nesse caso de Tennessee Williams. Não é acaso que me lembre de Salmon e do rosto de Paola Bigato, cujo momento de alta expressividade foi fotografado graças à precisão do fotografo posto atrás de mim, que fazia o papel de diretor da demonstração de trabalho ocorrida no teatro da antiga sede da Escola de Arte Dramática de Milão em 1986. Um ano depois, nota-se a mesma qualidade expressiva no rosto da atriz Paola Baldini, que trabalhava, sempre com Thierry, no papel de Mabel/Gena Rowlands extraído do filme Uma Mulher Sob Influência, John Cassavetes, 1974; (A Woman Under the Influence, 1975), do grego-americano John Cassavetes (1929-89).

Paola Baldini/Mabel, 1989, foto Maurizio Buscarino.

Paola Baldini, ao fundo o autor Renato Gabrielli, Sergio Romano, Silvano Melia, Lettere alla Fidanzata, direção de Mauricio Paroni de Castro, CRT Milano, 1994, foto do diretor.

A mesma atriz, sempre, um ano depois trabalhou comigo no meu primeiro espetáculo importante em Milão, Cartas à Noiva, texto de Renato Gabrielli. Nota-se a foto dela no papel de Ofélia Queiroz, namorada de Fernando Pessoa. Para continuar a viagem expressiva do que coincide entre experiência existencial e experiência de palco – impossível de descrever, possível de viver e, paradoxalmente, formalmente narrável – veja-se a foto onde eu trabalhava no papel de diretor da demonstração de trabalho.

Paola Baldini e Sergio Romano, Lettere alla Fidanzata, de Renato Gabrielli, direção Mauricio Paroni de Castro, CRT Milano, 1989, foto do diretor.

A existência dos alunos atores onde estava imerso na situação do diretor de meus companheiros e amigos, criava dramaturgia em cena, ao lado de Gaetano D’Amico, que fazia o papel do racista Jack Migan, de 27 Carros de Algodão, de Tennessee Williams.

Naquela mesma tarde havia um único negro na plateia, que perguntou diretamente a Jack Mighan e a Gaetano – “o que ele tinha contra os negros”. A plateia gelou. Gaetano não poderia responder nada, porque não tinha nada contra os negros, e nem Tennessee Williams havia escrito aquilo, mas Jack Mighan respondeu utilizando-se do mesmo sorriso sarcástico de Gaetano, do mesmo olhar simpático, se o negro “não viria trabalhar para ele”. Tal presença dramatúrgica em cena não era uma metodologia, não era um “talento”, não era Tennessee Williams, mas era uma extensão, uma expansão do teatro de Thierry Salmon, para muito além da direção de Thierry Salmon: na simplicidade da sala, na complexidade da cenografia mental compartilhada por todos os presentes testemunhava-se a criação de um universo do “outro de si” que Lacan teria citado certamente se o pudesse ter visto.

Da mesma forma, observe-se a expressão dramática rosto de Salmon na foto com Paola Bigato. A imagem remete a uma expressividade inconscientemente “herdada” pela criatividade de Paola Baldini anos depois, que emprestava tal trabalho ao texto de Renato Gabrielli, Cartas à Noiva, de 1989. Aqueles momentos com Thierry mudaram o meu modo de dirigir e criar, e ecoam fortemente até hoje.

Gaetano D’Amico/Jack Migham, Thierry Salmon, 1986, foto Maurizio Buscarino.

Nesta outra foto, Thierry “colou” os pés de Jack Mighan no palco que indicou ao outro personagem racista levado por Maximiliano Speziani, uma grande liberdade para provocar o colega de desmandos autoritários do Sul dos Estados Unidos. Era Massimiliano, que trabalhava sobre Archie Lee, de Longa primavera interrompida. Duas personagens masculinas e racistas no mesmo espaço mental: primeiramente a do ator, comungada pelo diretor demiurgo Thierry; posteriormente, outra personagem expandida pelo contato direto com as existências do publico presente na plateia.

Estamos à antípoda de um teatro dito “interativo”. Estamos, porem, imersos na coincidência da essência social e existencial de todas as pessoas envolvidas presencialmente no espetáculo. O alcance desse tipo de prática só foi possível graças a uma qualidade inata de Salmon: um diretor que praticava demiurgia pedagógica sem declarada intenção de fazê-lo.

Massimliano Speziani/Archie, Gaetano D’Amico/Jack Migham, Thierry Salmon, 1986.

A personagem de Massimiliano – Archie ao lado de Gaetano – Jack Mighan, encontravam-se em dois lugares coincidentes: no círculo do espaço cênico e num espaço dito, pelos dois atores “O Gato Verde”, um bar frequentado por brancos no Sul dos Estados Unidos. Esse bar não existe em nenhum texto de Tennessee Williams, e muito menos em qualquer indicação precedente de Thierry Salmon, ou de qualquer espectador presente. Simplesmente nasceu da imaginação do ator Gaetano, imediatamente encampada pelo ator Massimiliano Speziani. Tudo o que passou a ser narrado pelos dois acontecia naquele O Gato Verde; todas as piadas racistas, todas as tramoias, as nefandezas que acontecem em qualquer bar frequentado por aquele tipo de gente – e não de personagens inventadas por um autor dramático. Provavelmente são análogas piadas, maldições, planos que ocorrem até na Casa Branca de Trump. Ao é uma simples improvisação, lugar mental concreto que cairia como uma corrosiva bomba estética sobre o atual muro em construção entre os Estados Unidos e o México. Se fosse encenada hoje.

Estamos muito além de qualquer metodologia, de qualquer estilo, de qualquer mania estética, de qualquer subversão ideológica, de qualquer misticismo dito político. Estamos no mítico O Gato Verde, que me parece muito mais concreto que qualquer dramaturgia cujo suporte é o papel. O suporte humano de todos nós criou essa aura que tem função ativa em qualquer lugar onde possa ser coincidente e incidente no mundo atual.

Ainda um último exemplo: Compare-se a foto do casal Cassavetes, morto por cirrose, e a atriz/esposa Gena Rowland. Com a foto da Mabel de Paola Baldini. E’ a expressividade vertiginosa que nasce dessa expansão da arte que acredito seja a marca maior e distintiva de Salmon, muito grande para ser reduzida a um “método” de construção de personagem, ou mesmo a um dito talento teatral.

Gena Rowlands, Uma Mulher Sob Influencia, John Cassavettes, 1974

 

O casal John Cassavetes – Gena Rowlands

Acredito que esta descrição sirva como uma introdução importantíssima aos brasileiros sobre trabalho desse diretor extraordinário, que teve a sorte de encontrar-se com outra dramaturgista extraordinária chamada Renata Molinari, que está presente neste livro.

Ative-me à minha experiência pessoal com a entidade Thierry, que me influencia até hoje como diretor, como dramaturgista, como ser humano.

Paola Baldini / Mabel, 1987 foto Maurizio Buscarino

De Renata Molinari, em seu trabalho constante com Thierry, tomo emprestada a convicção de que “dizer utilizar também os barulhos que fazem parte do espaço, um teatro sonoro, mais que verbal”. As possibilidades do espaço devem ser colocadas à prova pela mente do ator.

E que “não existe nada na vida que não possa ser assumido dentro de um espetáculo; se você se move, não numa dimensão de naturalismo, mas de coerência orgânica no desenvolvimento de consequências da própria vida. O espaço, o objeto, as cores os sons, todos os elementos têm uma necessidade dramatúrgica precisa e ficam à disposição [de leitura e de percepção] do espectador desde o começo. (…) O espaço cênico para nós é um ponto de fuga, ou um território onde proponho nosso desafio como necessidade expressiva. Consideramos o espaço cênico como lugar artístico autônomo, lugar mental onde as coisas acontecem. Lugar que tem direito de existir quando somos obrigados a negá-lo: interrogamo-nos sobre a possibilidade ou não de sua própria existência, e, portanto, não o consideramos como um fato [real, mas de ficção]”. – “Crisalide-Eventi di teatro”, Paolo Ruffini, 1997, Bertinoro.

Paola Chegou a tomar banho no antigo balneário publico (chamado hotel diurno) enquanto Mabel; Gaetano disse o que disse ao espectador negro sem raciocinar.  Ambos confessaram não “estarem tomados” pela personagem, ou “não era eu” ; própria vida em seu fluxo.

Essa dicotomia da vida em seu e a sua representação mimética (de categoria aristotélica) esta’ no centro do conto de Borges “o Erro de Averrois”, em O Aleph.

Thierry iluminou uma estrada criativa que certamente foi traçada e vivida por Luigi Pirandello no seu trabalho direto com os atores quando transgredia seus contos novelas em suas peças, – hoje, com justa razão, julgadas literária e convencionalmente como obras primas do teatro do século XX. Tenho, entretanto, certeza de que este aspecto de dramaturgia de cena esteja fora de tal julgamento.  Thierry e seus procedimentos intuitivos são exatamente isso. Era fácil identificar a genialidade que estava por trás de sua expressão teatral, mesmo nos momentos em que elas não fossem felizes espetacularmente. Porque justamente tratava se da vida teatral em seu fluxo quotidiano.

Próximo como princípio estético – ainda que distante formalmente, estava outro gênio com o qual pude conviver e aprender naqueles anos: Tadeusz Kantor. Com ele encerro esta apresentação, deixando espaço ao leitor para dar sentido a esta leitura, além de completar as necessárias e, por que não, propositais – lacunas de meu testemunho.

“O espaço da vida é o espaço da arte; ambos confundem-se, compenetram-se e dividem um destino comum; A ‘quarta parede’ não tem sentido porque a necessidade da obra teatral reside nela própria; o espetáculo acontece não para alguém, mas na presença de alguém; atores não podem fingir uma personagem ou representar um texto; o drama e a vida coincidem na criação de um espetáculo-obra de arte.” Tadeusz Kantor, em suas Lições Milanesas

Gaetano D’Amico / Jack Migham e o Diretor do Workshop / Mauricio Paroni de Castro.   Foto Carlotta Mattiello

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo. Chapecó: Argos, 2009.

Agradecimentos

Alvise Camozzi; Cassio Diniz Santiago; Carlotta Mattiello; Gaetano D’Amico; Henning von Rautenfelden; Ivam Cabral; Joaquim Gama; Le Conde; Lia Cotarella; Livio Tassan Manngina;  Massimiliano Speziani; Matheus Parizi; Paola Baldini; Renata Molinari; Renato Gabrielli; Renato Paroni de Castro; Sylvia Soares; Tarcisio Tassan Mangina.

Fondazione Milano – civica Scuola d’Arte drammatica di Milano

ADAAP – Associação dos Artistas Amigos da Praça

Maurizio Buscarino

(*) O belga Thierry Salmon (1957-1998) é pouco conhecido no Brasil. Encenador-pedagogo extraordinário, ele foi o criador do que chamam círculo neutro. Foi ocasionalmente utilizado segundo um senso comum enquanto “método” de “construção de personagem”. Por isso interpelado, sugeri ao Professor Eduardo de Paula que indagasse sobre o trabalho de Thierry Salmon e a dramaturgista Renata Molinari. Um extenso trabalho desenvolveu-se em seguida. Com nossa tradução, curadoria e organização, pode ser integralmente baixado aqui:

http://www.seer.ufu.br/index.php/rascunhos/issue/view/1804

Vale a pena ler a totalidade da revista, com intervenções valiosíssimas de outros importantes colaboradores na trajetória de Thierry.  Ê de grande valia a estudantes e profissionais que trabalham na dialética e fluxo do teatro enquanto existência.

O dossiê INCURSÕES NO TEATRO DE THIERRY SALMON – “porque o efêmero também deixa marcas”, publicado na Revista Rascunhos – Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas – da Universidade Federal de Uberlândia, traz luz sobre sua atividade. Publicamos algumas partes também nesta coluna Chá; por desnecessário acenar que o tipo de conhecimento teatral produzido na SP Escola de Teatro será muito enriquecido por uma prática teatral e pedagógica tão próxima a nós. Segue, em quatro apontamentos, a publicação das introduções minha, de Eduardo De Paula, de Renata Molinari e uma breve entrevista com Thierry.