EN | ES

A situação da crítica

Publicado em: 02/10/2017 |

Em vez de oferecer sua opinião, um grande crítico permite que os outros formem suas próprias opiniões com base na análise crítica que ele produz. Além disso, essa definição da figura do crítico não deve ser um assunto particular, mas, na medida do possível, um assunto objetivo e estratégico. O que devemos saber sobre um crítico são os valores que ele defende. Ele deve nos dar essa informação.”
Walter Benjamin

 

Acredito que a crítica relevante é em algum nível uma extensão da arte. Permite um acesso a conteúdos presentes em uma obra, que só se tornam visíveis a partir de um exame mais dedicado, exame que exige uma disposição completamente distinta daquela comum ao público consumidor de cultura. Isso porque tais conteúdos não estão evidentes na obra, mas sim, no diálogo que ela promove com problemas e situações características do seu tempo, tradições, visões de mundo, ou ainda interlocutores, sejam eles filósofos, pensadores ou outros artistas. Uma obra pode ainda estimular raciocínios particulares em uma pessoa; e sendo ela um crítico passa a ser sua tarefa compartilhá-los, possibilitando a todos uma nova e diferente visão de uma mesma obra.

 

Nesse sentido, como formula Terry Eagleton, toda crítica é em algum sentido política, tanto porque ela é moldada pelas condições ideológicas nas quais suas várias correntes emergem, quanto porque, não importa o quão escrupulosamente apolítica se postula, ela desempenha um papel estratégico na disseminação e na interpretação da cultura que possui implicações políticas inevitáveis.

 

A crítica tem uma dimensão política por ser extensão da prática cultural, que é inevitavelmente política. Está sempre ligada a uma visão específica de mundo e a uma atitude característica diante dele. Há artistas, por exemplo, interessados em representar as relações entre os homens e entre os fenômenos que os cercam, procurando por ângulos menos acessíveis à experiência rotineira, que ajudem a despertar uma consciência crítica. Outros querem apenas traduzir ou documentar, sendo muitas vezes responsáveis por preciosos registros de um determinado tempo. E há ainda aqueles que preferem virar do avesso tudo o que conhecemos, querem inventar um mundo novo. Boa parte da renovação musical que o século XX experimentou dependeu de artistas com essa vocação.

 

Esses impulsos por si só já podem revelar diferentes visões de mundo ou atitudes diante dele. No entanto, ainda que movidos por pressupostos comuns, os artistas produzem obras muito diferentes umas das outras, pois possuem trajetórias de vida, aprendizados, parcerias e repertórios diferentes. Ao crítico cabe a tarefa de reconhecer este conjunto de disposições que definem um artista, a maneira como elas se movem ao longo da sua trajetória e suas consequências em seu trabalho. Como ressonância da obra de arte ou do projeto que examina, a crítica deve ser consciente do seu papel formativo, condição que exige preparo e estudo.

 

No caso do teatro, a crítica possui um papel ainda mais decisivo. O teatro, diferentemente de outras manifestações artísticas, ocorre em um único instante. Ele não é nem o seu texto, nem sua música ou aparato cênico, elementos que podem ser preservados para o futuro; é a ação conjugada de uma série de elementos no tempo. A crítica estabelece, portanto, um importante elo entre o que se faz no presente com o futuro. Tanto um futuro imediato, aquele que permite ecoar o sentido de um trabalho teatral no seu próprio tempo, quanto o futuro distante, aquele no qual habitarão indivíduos interessados em olhar para sua história e que terão na crítica uma fonte fundamental.

 

O primeiro caso é, talvez, o que está mais ameaçado atualmente. Isso ocorre porque boa parte da crítica mais comprometida ainda está estacionada nas estantes das universidades, como consequência da mediação rarefeita que a produção acadêmica possui com a dinâmica da vida pública. Os trabalhos ali realizados são lançados a uma distância com pouco peso na vida existente do lado de fora da universidade.

 

Por outro lado, nos principais veículos de comunicação, a função da crítica está mais ligada a uma espécie de referência para o consumo dos espetáculos em cartaz. Referência que incorpora, por vezes, uma nítida demarcação ideológica, em um esforço para garantir a satisfação da expectativa daquele que seria o leitor típico de determinado veículo. Com certa regularidade, que acredito não ser eventual, o crítico parece pressupor um interlocutor que não frequenta o teatro, tamanho é o espaço destinado a reconstituir e, nos piores exemplos, falsificar aquilo que já podemos encontrar na cena.

 

São descrições embaladas em predicados. Abusam, portanto, dos adjetivos deslocados de qualquer tipo de análise mais detida; bem como, da fórmula do epíteto, que em alguns episódios resulta em comparações disparatadas ou mesmo levianas. Acusando ou elogiando, são raros os casos em que as questões mais significativas são colocadas em movimento. Ou ainda, que seja possível reconhecer o fenômeno criticado em relação a um conjunto mais amplo de manifestações culturais, e em relação à história da qual inevitavelmente faz parte.

 

Felizmente ainda contamos com exceções importantes, ocasionalmente feitas por iniciativas individuais dentro dos próprios veículos de comunicação. Mas são em sites dedicados ao ofício do crítico, alguns blogs pessoais e publicações periódicas empreendidas por grupos ou coletivos de teatro, que ainda é possível encontrar a tentativa de realizar um projeto mais continuado e consequente de formação crítica. Contudo, considerando mais amplamente os diversos canais de comunicação hoje disponíveis, tudo indica que o pior ainda está por vir.

 

Há uma espécie de crítica que surge nas redes sociais e que muitas vezes transcende as fronteiras do círculo de amizades daquele que ali escreve, adquirindo implicações públicas. Trata-se de uma crítica escrita por impulso passional sem qualquer mediação racional ou trabalho intelectual. Há um procedimento que vem se tornando típico nesses casos: o crítico mostra perplexidade com um cenário em que hipotéticos interlocutores ainda não conhecem a extraordinária verdade que ele tem a oferecer. Essa espécie de intimidação ressentida, que neutraliza o debate de forma autoritária, faz de qualquer um que não esteja precisamente de acordo com a sentença do crítico, suspeito de ignorância. O fato é que nem todos nós temos disposição ou interesse em lidar com um coraçãozinho ressentido, quando não há com ele qualquer vínculo afetivo.

 

Parece claro que a tarefa do crítico, que procuro defender, exige que ele seja capaz de transformar em matéria para debate, tanto aqueles episódios em que se sente contrariado, quanto aqueles em que se sente gratificado. Capacidade fundamental para a vida adulta em uma sociedade democrática. Lamentavelmente, o comportamento desmedido e estridente como reação à contrariedade, tipicamente ligado à certa fase da infância, vem se tornando frequente na construção desses discursos.

 

Os exemplos mais grosseiros e desonestos chegam ao ponto de nem ao menos conhecerem e examinarem o próprio objeto ou evento que pretendem criticar. Prejuízo considerável para aqueles que ainda tem algum interesse no debate e no aprendizado. Afinal, a história não é tão antiga assim e com um breve exame seria possível calcular o estrago que esse tipo de comportamento é capaz de produzir. Como elemento para essa equação vale ainda apontar que o que está em jogo nesses casos, longe de qualquer interesse na reflexão ou no debate, é o esforço em arquitetar o escândalo capaz de garantir um momento sob o foco dos holofotes. Me lembra um velho ditado que diz: “Quando Pedro fala de Paulo, sabemos mais de Pedro do que de Paulo”.