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Sincronismo e Iconoclastia

Publicado em: 18/09/2019 |

Chá e Cadernos 100.14

Mauri Paroni

Criar forma sem impor-se receituários é fundamento de qualquer arte de utilidade expressiva. Igualmente, a busca de espaço para manobra mental através da sincronia ou da iconoclastia permite um trabalho mais criativo pela respiração intelectual livre; estas não são, porém, um fim estético em si; são apenas uma ferramenta. Quais seriam? Cada artista produz as suas seguindo a formação e a invenção que lhes forem próprias. Por serem eminentemente empíricas, não podem ser descritas ou metodizadas – traço alguns exemplos, mas o leitor divirta-se elaborando os seus.

I

Dois momentos cruciais do teatro de escritura narrativa fixada no papel ocorreram no Ocidente:

1. O fluxo existencial da vida separou-se de uma construção mimética da mesma – (por exemplo: o fluxo vital é coisa que compete ao espectador e a sua poética é coisa que compete à representação dos atores e do dramaturgo); isso foi elaborado filosoficamente por Aristóteles na sua Arte Poética e muito bem ilustrado no conto O Erro de Averróis, em O Aleph, por Jorge Luis Borges.

2. A centralização, na trama, do que o herói conhece do passado de seu antagonista – não necessariamente do que narra; Foi essa a realidade abstrata elaborada por Ibsen na última metade da sua obra dramática (por exemplo: um protagonista resolve suicidar-se porque o antagonista o desconstrói como personagem, ao ameaçar revelar ou revelar seu passado a todos os demais – e ao publico). [ver apêndice].

Isto conferiria ao teatro ocidental o privilégio de ser a quintessência do teatro, certo? Errado. Porque no teatro oriental – alem daquele de matriz africana – houve outros dois momentos cruciais que definiram o surgimento da arte teatral como a entendemos pelo senso comum:

1. A separação entre o ritual religioso e o ritual poético arquetípico e social (por clareza: o cântico fúnebre dos funerais separou-se da representação – por exemplo, o Kathakali, o Noh, a dança balinesa, o subsaariano – ficou bem diferente de uma seção de evocação de espíritos de mortos;

2. A construção de praticamente todos os elementos constitutivos de uma tragédia, no Egito – e na África Subsaariana [importantíssimo clicar neste artigo: https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-pilulas-de-ano-novo-parte-1/ ]– foi levada para Grécia e Roma. Os romanos certamente conheceram muito mais da África do que se costuma imaginar: atravessavam o Saara a cavalo e mantinham contato com todas as sociedades ali encontradas.

II

O ciclo das distinções em hemisférios culturais Oriente/Ocidente e Norte/Sul, com respectivas dicotomias e comparações de valores “estranhos” uns aos outros, parece-me estar exaurido. Não obstante, continua a ser evocado num estéril exercício de afirmações maniqueístas. Na dramaturgia do papel como suporte, cristalizou-se – pelo evidente registro escrito que sobrevive ao tempo e aos vários contextos históricos – um teatro do fim dos ritos ditirâmbicos até o teatro da inutilidade do ser humano, este finalizado por Samuel Beckett em Esperando Godot(**).

Mas o mesmíssimo teatro foi também definitivamente encenado pela invenção cênica de Tadeusz Kantor (***). O seu Teatro da Morte, se visto do fim do sentido da vida para chegar ao nascimento da tragédia, adquire uma iconoclastia que sugere a enunciação de Nietsche dos mitos do eterno retorno, do super homem e da história do tempo escrita por Jorge Luis Borges. Quem nos garante que comecemos, no dia de nossa morte física, a nossa existência para caminharmos rumo àquele Paraiso perdido do útero, invertendo a estrutura da linguagem narrativa?

III

Outra sincronia menos antipática: O Livro do Genesis instilaria que quem fora feito à imagem e semelhança de Deus deveria povoar a Terra pelo domínio da natureza a seu único favor; este, o erro fundamental das três religiões milenaristas do livro. O que veio dali foi uma dita civilização e uma mentalidade dali derivado. Resultou também na atual incapacidade de arrestar a destruição da natureza – nem mesmo pensarem como desenvolver uma sociedade priva de consumismo suicida.

[Gênesis 1 – 27 – Deus, portanto, criou os seres humanos à sua imagem, à imagem de Deus; (…)
1- 28 – Deus os abençoou e lhes ordenou: “Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a Terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!”]

IV

No teatro grego, as performances davam-se ao ar livre e com luz natural. Para excluir a representação defronte aos intérpretes com a visão do público em torno deles, nasceu a arena. Causa simples, que também inspirou a invenção de instrumentos que amplificassem as características das personagens. Mais: Como o grego antigo dava valor religioso ao teatro, era proibido aos atores entrarem com o ”rosto nu” num lugar sagrado.
Atores dos Komos, Tragos, e Sátiros, ao pisarem no palco (skené) , no lugar reservado para os artistas (loghèion), entravam numa outra dimensão formal, política e transcendental: numa outra dimensão existencial. Se pudermos comparar com algo de nossos dias, talvez fosse uma sessão de candomblé ou o que diz-se acontecer no xamanismo. A máscara era, sim, elemento narrativo, enquanto aparência física diferenciadora das personagens entre si. Ela tinha sobretudo um valor sagrado, era uma conversa especial entre os mortos e os vivos, onde os atores, espécie de médiuns, transmitiam a palavra falada, nos dois sentidos: Da vida para a morte e da morte para a vida.

 

V

O momento do início de tudo não aconteceu somente no Ocidente. Assim como o do fim disso. Enquanto ciclo, enquanto crise eterna, somos e estamos nele. É Nietzsche, é Apolo, é Dionísio: negar essa realidade não é criticar, é não ser (o teatro):

[Um dia, o ser humano percebeu dentro de si uma força secreta, íntima e imaterial. Ela tinha o poder de subjugar racionalmente as ações de seu corpo. A tal mistério deu o nome de “alma”. Era igual a ele próprio: desejava, esperava, sonhava, exigia existir para o outro. Projetou-a nos objetos, nos animais e, enfim, no outro.

O passo seguinte foi mimetizar-se como objeto, vestir-se com a pele dos animais, mascarar-se com a face do outro. Esse universo, real e irreal ao mesmo tempo, materializou as agitações de sua “alma”. Muitos gostavam de assistir ao fenômeno. Era útil.

Assim começou o teatro entre gregos, índios, negros, arianos. Admitindo ou não, somos seus herdeiros. Esse atestado de civilização, mesmo separado da religião, é sagrado e público.] (****)

 

 

Apêndice

Traduzo este comentário de Ettore Capriolo sobre as notas de Massimo Castri sobre Ibsen, com os quais estudei aprofundadamente na Civica Scuola d’Arte Drammatica di Milano.

[- Sobre a dramaturgia ibseniana em geral: a relação passado-presente (lida numa chave predominantemente sociológica e a relação realidade-símbolo. Fala-se de Ibsen enquanto testemunha da crise da sociedade burguesa tardo oitocentista e de seus valores.

– A predominância do passado (…) talvez seja a maior característica do “naturalismo” ibseniano. (…) “No presente nada acontece”, havia já notado Szondi. (…), consequência da dominação do passado.

Mas como deveríamos considerá-la? Antes de mais nada, como um eco poético, uma tradução em termos de retorica literária da concepção positivista e mecanicista da realidade, da sociedade e da historia – concepção que, de fato, nega realismo ao presente (e ao futuro), vendo nas duas um resultado inevitável de eventos passados. Em maneira mais metafórica (e mais especifica), nesse peso do passado, nesse passado que incumbe, nessas personagens que não agem mas estão sempre virados para trás a olhar o passado, a descobri-lo (muitas vezes sem chegar a conhece-lo realmente, mas conservando-lhe uma imagem fictícia que esconde um pecado, uma culpa, uma morte, etc.) – nesse passado obscuro que parece uma imagem do inconsciente, nessas personagens que vivem nas pontas dos pés – não se pode não ver um espelho da burguesia de fins de século, que tem a consciência bastante suja e tem no armário os cadáveres acumulados nas guerras, nas fábricas e nas colônias durante todo o século XIX. Em outras palavras, as personagens ibsenianas aparentam, cada uma delas (portanto em sua totalidade), uma transcrição concreta da imagem abstrata de uma burguesia carregada de sensos de culpa mas absolutamente teimosa em reconhecê-los. Numa acepção mais próxima, enfim, tal predomínio do passado traduz-se também na lei-crendice mais especifica e “especial” da hereditariedade.

Junte-se ao peso dominante do passado o sufocamento de instituições (existente também em Pirandello) (…) fechadas, antes de todas, a família, entendida enquanto sexo formalizado. (…).

Dessa grande testemunha que foi Ibsen emerge um desenho da burguesia do fim de século [XIX] que tende a reprimir o sexo, o prazer, o desejo e a “instintosidade” enquanto dispersivos e inimigos da produtividade. Mais ainda, amassa-os na instituição da família entendida como pequena empresa, como reprodução continuativa do modelo geral autoritário da sociedade; O sexo sufocado dentro do matrimonio e da família, utilizado como liga da família em si.]

(*) Este artigo tem uma divida contraída deste outro, acessível clicando aqui:
https://www.spescoladeteatro.org.br/noticia/papo-com-paroni-convite-a-redescoberta-de-tecnicas-antigas-i Convite à (re)descoberta de técnicas antigas – I

(**) “Tente. Falhe. Não importa. Tente outra vez. Falhe de novo. Falhe melhor.”

(***) “O mestre”
Tadeusz Kantor estava muito aborrecido. Nada funcionava naquela criação. Aos berros, expulsou da sala de ensaio todos os presentes. Queria solidão.
Pausa.
O esqueleto de cena não se mexia. Insultou-o longamente.
Pausa.
Diante da insolência, agrediu-o até que se reduzisse a um monte de ossos.
Silêncio.

(****) De um meu artigo para a Folha de São Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2312200211.htm

Principais autores de referencia citados

Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.) – filósofo grego, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande. Seus escritos abrangem diversos assuntos, como a física, a metafísica, a poesia, o drama, a música, a lógica, a retórica, o governo, a ética, a biologia, a linguística, a economia e a zoologia.

Samuel Beckett (1906-1989) – dramaturgo e escritor irlandês. influenciado por James Joyce, é considerado um dos últimos modernistas. Autor de Esperando Godot, Fim de Jogo, Dias Felizes e outras obras icônicas de século XX.

Ettore Capriolo (1926-2013) – critico teatral, ensaísta e tradutor italiano. Foi professor, por dezenas de anos, na Escola de Arte Dramática de Milão, além de conselheiro intelectual de alguns dos mais importantes encenadores italianos da segunda metade do século XX.

Jorge Luis Borges (1899-1984) – escritor, poeta, tradutor, crítico literário e ensaísta argentino. Em 1914, sua família mudou-se para Suíça, onde estudou e de onde viajou para a Espanha. Talvez o mais celebre escritor argentino.

Massimo Castri (1943-2013) – ator, e diretor italiano famoso por sua visão inovadora de importantes autores da convenção europeia. Dirigiu grandes teatros estáveis italianos e foi um reconhecido pedagogo.

Tadeusz Kantor (1915-1990) – diretor polonês, criador de happenings e cenógrafo conhecido por suas performances teatrais revolucionárias.

Henrik Ibsen(1828-1906) – dramaturgo norueguês, considerado um dos criadores do teatro realista – também poeta e diretor, foi um dos fundadores do modernismo no teatro.

Bibliografia

O Aleph, pdf para baixar, Jorge Luis Borges,
[https://www.google.com/search?ei=IRlvXaLLEOTX5OUPsfuImAc&q=jorge+luis+borges+aleph+pdf&oq=Jorge+Luis+Borges+aleph&gs_l=psy-ab.1.1.0l2j0i22i30l3j0i22i10i30j0i22i30l4.198656.200462..204129…0.0..0.132.689.1j5……0….1..gws-wiz…….0i10i67j0i67.vfCfzn6uK0k ]

Vie de l’Art Theatral des origines a nous jours, Gaston Baty e René Chavance, Librairie Plan, Paris, 1951.

Ibsen postborghese, Massimo Castri e Ettore Capriolo, Ubulibri, 1984.

Wikipédia

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Ilustrações

Attribution:

https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sarcofago_con_scena_dionisiaca,_210_ca_01.JPG

Pequenas máscaras afro – século XIX
https://www.tatterton.it/prodotti/oggetti-e-complementi/statue-e-sculture/maschera-afro-piccola-detail.html