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Quotidiamo nasceu aqui

Publicado em: 02/10/2017 |

Confesso, torna-se até um pouco insuportável: a cada produção cênica, a cada nova aventura, não consigo fazer tarefas outras, falar de novos assuntos, meu foco acaba, invariavelmente, nos mil e um pormenores de que nos devemos ocupar quando estamos em processo de criação. Como pais corujas, no blog pessoal, nas redes sociais, só se fala dele (do “filho”), sobre ele, quase que obrigando os amigos a olharem para ele (para o “filho”). Cada peça de teatro nova é, pois, como um filho. E já lá vão cinquenta.

 

Quando a temporada acaba, há sempre um pedaço de nós que morre. Fica ali, impregnado nas tábuas. Nos figurinos, nos pedaços de cenografia, nas fotografias que se tiraram, nas notícias de jornal que foram publicadas e, sobretudo, nas nossas memórias. De quem viu. De quem transmitiu. Se vestiu. No caso dos atores, nos corpos. Que estes também têm memória, como se sabe. E fica um vazio, vamos falar do quê agora? Para quem? Com quem?

 

Até que aparece um novo projeto. E voltamos ao nosso ciclo vicioso de um viciado de teatro, algo que já confessei ser, nestas crônicas mensais. E, portanto, eu vou dizer algo que já disse, provavelmente das 49 vezes em que produções cênicas viram a luz e nasceram na (e para) a cena. Esta, sim, é especial. Nunca houve como esta! Acreditem, tanta coisa nova, desafios tremendos, generosidades encontradas, talento múltiplo, energias cruzadas, e desta vez – aqui sim, posso gritar em alto e bom som – inédito! Oito mãos na escrita, na construção de uma dramaturgia (nova?) multicultural e multinacional.

 

Falo do espetáculo que iremos estrear aqui na cidade do Mindelo, no próximo dia 20 de março. Falo de “Quotidiamo, esta não é uma história de amor”, um texto escrito a oito mãos (nestes tempos modernos, as mãos são sempre em dobro, já que se digitaliza e não mais se “manuscreve”), em quatro países e três continentes.

 

Sinceramente, não sei onde ou quando me nasceu a ideia. Desafiei o escritor Rui Zink, de Portugal, a iniciar o processo. Depois, o dramaturgo José Mena Abrantes, de Angola, a dar seguimento. De Cabo Verde, convidei Abraão Vicente para avançar com a terceira parte e, finalmente, desafiei o Ivam Cabral, cujo espírito de generosidade falou mais alto do que a falta de tempo provocada pelos bilhões de projetos em que sempre se encontra envolvido. Que privilégio, ter um texto escrito por estas quatro pessoas tão talentosas! E agora, publica-se? Não, não foi esse o combinado. Vamos lá, senhor diretor, meta as suas mãos na massa e avance para a etapa seguinte.

 

A história nasceu sem nome e foi-se revelando assim, órfã de um batismo. Até que chegamos a uma palavra nova, criada para o efeito. “Quotidiamo”. O título do espetáculo, que é um jogo entre as palavras quotidiano e amor, dá um vislumbre do retrato desenhado pelos quatro autores do texto: a relação de um casal que é vítima dos problemas do dia a dia, desde a crise financeira à própria rotina de uma vida a dois. Não podia ser mais universal.

 

Para dar corpo, voz e alma às palavras seria indispensável uma dupla de atores mais do que competente. Duas pessoas que não tivessem medo de arriscar, de se jogar, e com uma capacidade técnica acima da média. Quis o destino que este pequeno elenco também fosse multinacional. Janaina Alves, brasileira, a viver no Mindelo há cerca de três anos, e Renato Lopes, um dos atores cabo-verdianos mais talentosos da nova geração, aceitaram o repto e com dedicação, talento e suor, dão o corpo ao manifesto cênico que nos chegou em mãos.

 

De Portugal, vieram mais duas colaborações artísticas: o músico e compositor Rui Rebelo compôs uma belíssima trilha sonora – algo raríssimo em Cabo Verde, apesar de sermos conhecidos como um país musical – e Paulo Cunha, que desenha a arquitetura luminosa do espaço e das cenas, sendo ainda responsável pela projeção do vídeo que, em tempo real, está sendo filmado pelas personagens e emitido no fundo, acrescentando ao caráter já trimendisional (TD) da arte cênica uma possibilidade de visão em alta definição (HD), das expressões e do respirar das personagens nalgumas passagens da história.

 

Para compor o bolo criativo, estou eu, que neste momento não tenho mais assunto a não ser este. Um encenador / diretor cabo-verdiano, filho de pais portugueses, nascido na França, pai de duas filhas crioulas e casado com uma brasileira do Piauí. É como se esta produção tentasse ser, de alguma forma, uma síntese de mim mesmo enquanto agente teatral, o culminar de um amadurecimento artístico, de influências díspares e cruzamentos de três continentes, com epicentro numa bissetriz chamada cidade do Mindelo.

 

Numa altura em que por razões acadêmicas me encontro mergulhado numa profunda reflexão sobre identidade cênica, mormente do teatro que se faz em Cabo Verde, corolário de um percurso de mais de vinte anos de trabalho e meia centena de produções encenadas, “Quotidiamo” não deixa de ser uma obra paradoxal. Mas continuo convencido de que somos do lugar de onde somos felizes. Que o nosso umbigo, enterrado algures, e o nosso DNA, herança dos nossos antepassados, se manifestam de uma ou outra forma conforme o contexto social, cultural, geográfico, antropológico do lugar onde nos encontramos. O que sempre chamei de “a energia do lugar”, é isso que nos vai moldando.

 

É por isso que não tenho qualquer dúvida em afirmar que “Quotidiamo” é uma obra de teatro cabo-verdiano, puro e duro, apesar da diversidade na origem das diversas colaborações artísticas que lhe deram corpo. Porque nasce aqui. Neste chão. Emana com esta poeira oriunda do deserto do Saara. Com a maresia deste mar azul que nos rodeia por todos os lados. Com a musicalidade deste povo que ecoa a cada esquina. Porque a universalidade do tema nos toca também, embora seja quase sempre difícil admiti-lo, assim, fora do recato onde se escondem a sujeira e as frustrações do nosso dia a dia. “Quotidamo” veio do mundo mas nasce em nós.

 

E para o mundo há de voltar.  (Quem sabe, um dia destes, em São Paulo)