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Poeira de Deus

Publicado em: 02/10/2017 |

Ilhas perdidas
no meio do mar
esquecidas
num canto do Mundo
– que as ondas embalam
maltratam
abraçam…

Jorge Barbosa, poeta cabo-verdiano

Reza a lenda que Deus, ao dar por terminada a sua semana de sete dias de trabalho, verificando que nas mãos ainda tinha uns resquícios de massa, num gesto indolente para as limpar, deu origem a um pequeno arquipélago no Oceano Atlântico.

Isso seria até poético, não fosse a agravante de já lá nada ter para colocar nele, pois que tinha dada a sua tarefa de construir o mundo por terminada. Teria nascido assim Cabo Verde, pequeno país, plantado no meio do Atlântico, a cerca de 450 km da costa ocidental de África, feito arquipélago com dez ilhas, nove delas habitadas, que há bem pouco tempo comemorou o fato de ter atingido os 500 mil habitantes.

Também essa seria a explicação para a extrema pobreza da terra, o clima seco e desolador, a espaços a fazer lembrar uma paisagem lunar que os portugueses descobriram no século 15 e por lá ficaram tendo em conta a vantajosa posição geoestratégica, uns pedaços de terra ali ao Deus-Dará bem na bissetriz entre a Europa, a África Ocidental e a América do Sul.

Só não se previu que dali nascesse o homem crioulo. Com as suas raízes múltiplas, concebido numa espécie de laboratório humano, social e cultural, feito para resistir a todas as intempéries e desgraças. Um país que já foi várias vezes, em pleno século 20, dizimado pela fome, com triste destaque para a fome de 1947, que levou para o outro mundo cerca de um terço da população que ali habitava na época.

Um país que foi Nação muito antes da Independência efetiva, confirmada no histórico dia de 5 de Julho de 1975, perante a euforia do povo, o peso da responsabilidade dos primeiros dirigentes políticos e da incredulidade da comunidade internacional, que tinha aquele país como inviável, mesmo que por questões diplomáticas isso nunca tivesse sido assumido de forma pública e clara.

A verdade é que, muito antes de existir um Cabo Verde independente, já havia sido forjado o povo cabo-verdiano, povo lutador, generoso, alegre e nostálgico. Provavelmente, o único que acreditou que a força e a matriz da sua própria gênese seriam suficientes para criar um país viável. E assim foi.

Hoje, Cabo Verde tem invejáveis índices de desenvolvimento, na educação, na saúde, no desenvolvimento rural, nas infraestruturas, nas comunicações. Tem praças digitais, aeroportos internacionais e universidades, tudo ainda muito recente. E tem muitos problemas para resolver, com certeza. Mas seja qual for a maneira como o cabo-verdiano encare o presente, de forma mais ou menos critica, não há ninguém que não acredite no futuro desta Nação improvável.

Também na arte cênica estamos hoje em patamares inimagináveis há duas décadas atrás. O teatro é hoje uma arte socializada e que gera entusiasmo em praticamente todas as ilhas, vales, cidades, aldeias, bairros e ruas. Depois da música, inegavelmente a forma de expressão artística que mais pujança tem em Cabo Verde, o teatro é aquela que de mais perto lhe segue as pisadas.

Servirá este espaço de crônica precisamente para isso: partilhar com vocês este mistério que é o amor do cabo-verdiano pelo teatro. Como se faz, onde se faz, em que condições, como é o público, o ator, as energias, a musicalidade e as experiências cênicas incríveis que por aqui brotam com uma facilidade surpreendente.

Como é o teatro no país que foi misteriosamente gerado pela poeira de Deus? É sobre isso que falaremos nos próximos textos.
Até lá, aquele abraço, deste lado do mar.