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Os programas dos espetáculos, de graça

Publicado em: 02/10/2017 |

Minha vida é andar
Por esse país
Pra ver se um dia
Descanso feliz
Guardando as recordações
Das terras por onde passei
Andando pelos sertões
E dos amigos que lá deixei.
(Luiz Gonzaga)

 

Recentemente uma grande atriz brasileira revelou que quando vai assistir a uma peça no teatro adora poder olhar, no programa do espetáculo, o nome do figurinista, do ator que a fez chorar… Disse que gosta de guardar os programas “dentro de uma caixa, no fundo do armário” para que possa, “depois de 10 anos“, abri-la e recordar o inesquecível momento “tudo outra vez“…

Mas, além dessa declaração tão delicada, típica de uma grande artista, afirmou contundentemente também que “o programa de teatro deve ser dado“. Diz ainda que “que o público merece, tem direito às informações“. E, justifica, numa metáfora, que “não fornecer o programa seria como vender um remédio e oferecer a bula à parte, por outro valor“.

Tem razão a atriz. Ao menos, nas mais importantes Leis de Incentivo à Cultura em vigor no Brasil. Há algumas rubricas que, de fato, são proibidas. E, outras, como o “programa”, que são permitidas, mas que não podem, depois, ser comercializadas ao público.

A começar pela Lei Rouanet, não é proibida a previsão de confecção de programas para distribuição ao público, mas os mesmos devem, necessariamente, ser distribuídos de forma gratuita. De outro lado, o produtor do espetáculo pode, sim, vender os programas, desde que os custos a eles relacionados (arte, diagramação, gráfica etc.) não sejam pagos com o dinheiro público. Ou seja, se um espetáculo de teatro tiver a chancela do Ministério da Cultura (e todos os espetáculos financiados pela Lei Rouanet devem, obrigatoriamente, inserir os logotipos do Ministério da Cultura em todos os seus materiais gráficos e de divulgação) em seus programas, desde logo, o público já deve identificar que a comercialização dos mesmos é proibida.

E, não só os programas, mas também, por exemplo, as camisetas que algumas produções vendem nos saguões dos teatros, com a estampa do espetáculo. Tais camisetas não podem ter sido previstas nas planilhas orçamentárias dos projetos e pagas com dinheiro público para, depois, serem revendidas. Assim como os programas, todos os gastos com a confecção de camisetas promocionais devem ser suportados pelo próprio proponente para que sejam vendidas ao público.

Da mesma forma, é expressamente proibida a previsão de custos com coquetéis em estreias de espetáculos, de exposições ou em quaisquer lançamentos de livros, cd’s ou dvd’s. Isso porque esses coquetéis ou festas de estreias não têm, em geral, acesso livre ao público. Como sabemos, esses lançamentos, estreias ou aberturas têm coquetéis para convidados e são eventos para público restrito, e, justamente por essa razão, não podem ser financiados com dinheiro de renúncia fiscal.

Nessa linha, na última edição do Fomento ao Teatro, da Prefeitura de São Paulo, a Comissão Julgadora deixou registrada em ata a recomendação aos grupos proponentes de não incluírem, em suas planilhas orçamentárias, custos relativos a “convites”, que, neste caso, embora não sejam ilegais, fogem completamente do escopo da Lei, e, ainda, acabam absorvendo os já exíguos recursos a ela destinados, e, pior, comprometendo despesas indispensáveis a execução do projeto em si. Ademais, conceitualmente, a última Comissão recomendou que não se deve “privilegiar o acesso restrito de público a convidados, ainda que tal público seja composto por pares, formadores de opinião, pesquisadores, jornalistas e/ou críticos, entre outros“, tomando emprestado de outras Leis, o entendimento acerca de pagamento (com dinheiro público!) de despesa e de dinâmica que limitará o acesso ao espetáculo aprovado.

Já no ProAC, no Estado de São Paulo, embora as previsões de rubricas para programas, convites e coquetéis também não sejam expressamente proibidas, são todas normalmente reprovadas pela CAP (Comissão de Análise de Projetos), quando não há compromisso por escrito do proponente de que os programas não serão comercializados e de que não haverá privilégios para convidados (como estreia fechada para imprensa) e de que os coquetéis não serão restritos. As reprovações destas despesas, em regra, se fundamentam pela “ausência de interesse público”, que é o primeiro critério previsto no inciso I, do art. 10, do Decreto que regulamenta o ProAC. E os julgadores da CAP podem (e devem!) reprovar ou reduzir o orçamento do projeto de teatro que prevê despesas com programas que não sejam distribuídos de maneira gratuita.

É claro que qualquer produção deve oferecer ou vender o programa da peça ao público. O que ela não pode fazer é vender os programas se o espetáculo for financiado com dinheiro público. Essa é a única ressalva. Então, se é verdade que quase todas as peças, hoje, são subsidiadas por qualquer dessas Leis de incentivo ou de fomento, passa a ser verdade também que os programas não devem ser vendidos ao público!

Ora, assim, realmente, até do ponto de vista jurídico, acerta a querida atriz, que acredita, como nós, que o programa de teatro deva sempre ser disponibilizado ao público, e graciosamente. Porque o público merece e porque tem o direito ao programa. Faz jus sem ter que pagar novamente, eis que já pagou por ele antes. E, além do mais, porque é muito agradável a sensação de tê-lo em mãos e porque, de certa forma, é uma jeito carinhoso de levar o teatro para casa, não só em nossa memória… É tão bom saber quem são os artistas em cena por quem estamos nos encantando… Saber o quem é quem, na ficha técnica. É prazeroso ler a mensagem do diretor da peça, descobrir curiosidades sobre ela, ver a quem se destinam os agradecimentos da produção, e, às vezes, olhar as fotos dos artistas sem seus figurinos e maquiagens… São deliciosas essas sensações todas, sejam elas naquele instante, enquanto ainda estamos na plateia, sejam elas apenas recordações, depois de dez anos…

 

* Evaristo Martins de Azevedo é advogado especialista em Leis de Incentivo à Cultura e crítico de teatro.