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O Tempo e as Cartas

Publicado em: 02/10/2017 |

Por Marici Salomão, especial para o Portal da SP Escola de Teatro. 

Meus pais sempre gostaram de ler e nos incentivaram, a mim e às minhas irmãs, a ter esse gosto pelo conhecimento e prazer que saltam da literatura. Quando era pequena, gostava de ler debaixo da mesa do escritório do meu pai, onde havia caixas com coleções de livros que ainda não tinham ido para as estantes. Um dia peguei de forma aleatória um dos livros de uma caixa enorme: a Biblioteca dos Prêmios Nobel de Literatura. Dezenas de livros de capa dura, marrom, com o lado de cima dourado. O livro era “A Evolução Criadora”, de Henry Bergson.

Eu devia ser mesmo louquinha, porque me arrisquei a ler Bergson com 9 ou 10 anos. Hoje não lembro quase nada daquele pretenso estudo, mas de uma frase eu nunca me  esqueci – iria me marcar para sempre e era (mais ou menos) assim: “Até onde se puder dividir o tempo, estamos mudando”. Servia como luva para mim, sempre tão angustiada com sentimentos, fatos e sensações. Penso hoje no que devo ter pensado: Se a gente muda o tempo todo, então deve haver esperança na transformação para melhor.

Na cabeça da Marici menina, de triste eu poderia passar a alegre, de insegura eu me tornaria mais confiante, de sonhadora eu seria mais realizadora. Bastava confiar no tempo e, claro, agir sobre ele. Isso me alçava dos sentimentos estáticos, paralisantes, a um sentimento de libertação em direção a uma vida mais plena.

Sirvo-me sempre dessa imagem da mutação no tempo. Mudamos sem ao menos perceber que mudamos. Nunca somos o que éramos há um segundo, um frame de segundo, um nanosegundo, um… o quê? E é muito animador sentir que vivemos e criamos no tempo (não na percepção tão somente do tempo histórico ou cronológico, mas na intuição de um tempo quântico, instável e ambíguo). Tempo que não permite que voltemos atrás na ideia de “evolução”.

Peço desculpas a Bergson por ter restringido uma obra tão relevante a ideias parcas e rarefeitas. Prometo ler Bergson como se deve, mas agora, que leio em poltronas e cadeiras, à luz do olhar e dos conceitos de Deleuze.

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Nos últimos tempos, para meu grande prazer, tenho recebido algumas mensagens a respeito dessas escritas compartilhadas com os leitores do portal da SP Escola de Teatro. Chamo-as de cartas. Assinadas por pessoas que nem sempre conheço (mas todas de uma escrita tão delicada!). Merecem respeito. Publico aqui uma delas, a do Maurício Ferreira (que consentiu na publicação), em que comenta questões de minha última coluna: “Teatro Não Existe Sem Educação”. Obrigada, Maurício!

Olá, querida Marici.

Acabei de ler sua coluna no portal da SP e quis muito lhe falar, que sempre concordei com a ideia de que antes de escrever preciso pensar no público, por mais que existam dramaturgos que digam que escrevem para si, sempre me comoveu muito pensar se faria sentido um cidadão assistir a um espetáculo em que ele não entenda nada, não tenha referências, veja aquilo ali apenas como algo maçante ou até inútil.

Muitas vezes pensava em pessoas próximas, que não tinham uma educação consistente, o que não causa surpresa, já que, infelizmente, a sociedade brasileira passa pela deficiência da educação há décadas, ficava imaginando elas ali no meu lugar, na plateia, se esforçando para entender do que se trata aquele texto, muitas vezes hermético. É preciso pensar na educação, sim, na de quem escreve e na de quem assiste.

Achei lindo você dizer que não é necessário separar reflexão e entretenimento, acho que Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna, para mim gênios, provam isso em seus textos. Não penso que ter em primeiro plano a ideia do público possa vir a engessar o dramaturgo; pelo contrário, dará a ele a oportunidade de participar também de outro mundo. É realmente isso, como você diz em seu texto, é vivência, reflexão, consciência do outro, tudo isso se torna lindo quando se escreve com o coração, com a alma. A entrega deve ser intensa, não vejo outra maneira. 

Shakespeare, com certeza, representa tudo isso. Em uma época em que muito se escrevia por encomenda, seria impossível sobreviver do ofício de dramaturgo escrevendo apenas para si, mas suas ideias pessoais estão imprimidas ali também. Nisso está a genialidade do bardo.  Parabéns pela coluna.

Abraço,

Maurício Ferreira