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O dia em que serei defunto

Publicado em: 29/08/2019 |

Chá e Cadernos 100.13

Mauri Paroni

 

A nossa biblioteca é campo santo de interseções entre vivos e preciosíssimos saberes post mortem. Os acervos dos arquivos de Antônio Abujamra, Alberto Guzik, Christiane Riera, dos vivos Ivam Cabral, Emilio Di Biasi, José Carlos Serroni e os pensamentos dos frequentadores podem originar vertiginosas associações de saberes, reflexões, existências pessoais e artísticas. O simples ato de lê-los, ver, escutar seus cds e trafegar por ali pode alimentar anos de teatro futuro.

Algumas aventuras de pensamento teatral e existencial possíveis:

 

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Giovanni Stracci [Farrapos – o bom ladrão], após pedir que Cristo, crucificado ao seu lado, intercedesse por ele junto a Deus quando estivessem mortos, “acabou de morrer: era o único modo que tinha para lembrar a si  mesmo que estava vivo” – Esta é a ultima fala de “ A Ricota” – dita por Orson Welles no papel do diretor marxista de uma paixão rodada nos arredores de Roma com atores populares neo realistas. Filme de – ele, sempre ele – Pier Paolo Pasolini.

 

Cristo retrucou ao bom ladrão: ”Por que alimentaste quem fazia-te passar fome?”. Stracci terá terminado na cruz por dois motivos: ator esfomeado, vive o papel de um criado de “madame” dona da cadela por ele vendida para angariar dinheiro para comer; filme financiado pelo proprietário do jornal para o qual um homem médio  trabalhava como repórter no set – que entrevistou o diretor.  [o media metragem La Ricota faz parte do home vídeo Ro.Go.Pa.G, de 1963, do arquivo do diretor Emilio Di Biasi, na biblioteca.]

 

Pasolini fala de sua fé; mas foi acusado, pelo Vaticano, de “ofensas a religião ao Estado Italiano”. Aproveitou a ocasião para defender-se redigindo seus magníficos escritos corsários. A antiga tradição cristã, defendida por Pasolini, é posta em dialética àquela iluminista/modernista representada pelo papel atuado por Orson Welles; este acusa o moderno homem médio de consumismo irresponsável, racismo, escravagismo, ignorância, injustiça, crueldade gratuita.

 

Traço a dialética dessa obra com o que se conta de Benedetto Marcello [cujos CDs jazem nas estantes da biblioteca]: jovem e alegre, ao caminhar numa igreja  veneziana, precipita-se numa tumba pelo cedimento de uma lapide sob seus pés. Depois de retirado dali, passou a trajar luto e nunca mais sorriu até o fim de sua vida.  Criou somente obras como o “Trionfo della poesia e della musica nel celebrarsi la morte, e la esultazione” [O triunfo da poesia e da musica em celebração de morte, e a exaltação]. Outro titulo: Fantasia ditirambica eroicomica, onde conta o tedio diante da burocracia legal das atividades de administração publica que exercia para a Republica de Veneza.

 

O mesmo pode-se inferir da apropriação da morte enquanto poder – o mote “viva la muerte”, gritado pelos falangistas do ditador espanhol Francisco Franco na sangrenta Guerra Civil espanhola dos anos 30 do século XX, contestado em publico na aula inaugural da Universidade de Salamanca pelo seu reitor, Miguel de Unamuno [também no acervo da biblioteca].

 

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A ultima vez em que me avistei com minha mãe foi na entrada da biblioteca. Tinha 85 anos e estava a uma semana antes de seu falecimento, tomada pela metástase de um tumor muito agressivo.

 

Aluna da Escola Normal Padre Anchieta, lá formou-se em 1952. Tornou-se uma bibliotecária que trabalhou de maneira abnegada a implantar bibliotecas escolares pelo interior de São Paulo – era representante no Instituto Nacional do Livro,  uma de suas incumbências.

 

Emocionada, disse-me que havia frequentado aulas ali mesmo, naquela entrada. Não reclamou de dores, mas das injustas avaliações de um professor de latim a suas antigas colegas, como costumava fazer décadas atrás naquele mesmíssimo lugar. A memoria estava viva num encontro final que não se repete. Normalmente triste, aquele encontro revestiu-se – reveste-se – daquela felicidade interior mutante e sem descrição possível por tratar-se de um luto.

 

Em seu funeral, a lembrança daquele canto da biblioteca não abandonava o meu coração silencioso. Lacrimejava. Ivam Cabral, ali presente, sugeriu-me a leitura da teoria dos espaços de Bachelard, num percurso existencial mais direto, sem a mediação intelectual com que tentava de amparar-me num momento como aquele: Intuição humana da linha de encontros entre pensamentos,  existências, teatro, cinema e saberes disso nascidos; O canto preferido da infância, da juventude, da maturidade, da doença e da  existência.

 

A nossa biblioteca é um dos lugares propícios por excelência para  um artista construir pensamentos que nutrem a criação futura. Nela, pode-se reverter a eliminação autocrática via sumiço politico, simbólico ou metafórico de nossas ideias; pode-se reverter a escravização endereçada à morte.

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O pensamento  contido em Critica da Razão Negra, do camaronês Achille Mbembe, alerta sobre concepção da figura do negro como uma criação categórica europeia por séculos associada e tornada una com a escravidão – decorrentes disso os preconceitos da invisibilidade, do exotismo, da “raça” biológica “natural”, dos elementos constitutivos da lógica de exploração escravagista do ser.

Defuntos são eloquentes resultados à resistência política que a história produz. Todos seremos iguais a eles um dia, como declarado  no prologo de Barry Lyndon (de Stanley Kubrick – cd presente na biblioteca) sobre a persistência do mundo violento e desigual do século XVIII. Nesse século reinventou-se o racionalismo no culto iluminista ao progresso cientifico que aparentava ser o fim da injustiça humana na Europa. O cume desse salto exponencial do pensamento racional sobre  as superstições foi elaborado na ”Critica da Razão Pura”, de Immanuel de Kant.

Mas todos sabemos que o fim da desigualdade não aconteceu.

 

Monrovia, Libéria. Jogo de futebol entre ex-combatentes de diversas facções rebeldes durante a guerra civil. Foto: Paolo Pellegrin/Magnum –swissinfo.ch

 

Mbembe assevera que, de todos os seres humanos, o negro foi quem mais teve a carne feita mercadoria.  Negro e  raça nunca foram mais do que um na imaginação das sociedades europeias. Desde o  século XVIII , eles o alijaram do projeto moderno de conhecimento e do Governo. É o principio contido na sua necropolitica.

Não será preciso citar os genocídios da II Guerra, da Somália, do Burundi, do Camboja, da Armênia, ou em qualquer lugar que observemos a historia, todos os ocorridos nas guerras e movimentos políticos do século XX, no uso da morte como possessão política do corpo explorado descrito por Michel Foucault na teoria do biopoder.

Um modelo completo de necropolitica está no genocídio que foi a chamada Guerra do Paraguai: negros escravizados foram compelidos, pela promessa de uma alforria jamais cumprida, a combater ferozmente as forças do ditador Solano Lopez. Uma das batalhas finais foi eloquente no horror:  a de Acosta Ñu. Ali compareceram todos os  ingredientes da atual violência urbana brasileira:  crianças alistadas num exercito, escudos humanos e populações civis pobres envolvidas somente por encontrarem-se fisicamente onde se trava a guerra .

As descrições são horripilantes.

Narra o historiador paraguaio Fabián Chamorro à BBC News Mundo:  (…)Com o Exército paraguaio praticamente exterminado, figuras importantes dentro das forças aliadas chegaram a sinalizar que a guerra teria terminado e que seria o momento de deixar o país. (…) Uma dessas figuras era o general Luís Alves de Lima e Silva, futuro duque de Caxias, que liderava as tropas brasileiras no Paraguai – Quanto tempo, quantos homens, quantas vidas e de quantos recursos necessitaremos para terminar a guerra, quer dizer, para transformar em fumaça e pó toda a população paraguaia, para matar até os fetos no ventre das mulheres?”, argumentou com o imperador Dom Pedro II. A ordem (…) era de que a guerra só chegaria ao fim com a morte do presidente do Paraguai, o marechal Francisco Solano López. (…) recrutava soldados cada vez mais jovens.”

“Primeiro eles tinham dezesseis anos, depois catorze, treze anos”, relata Barbara Potthast, professora de História Ibérica e Latino-americana na Universidade de Colônia, na Alemanha: “Solano López conseguiu escapar algumas vezes dos aliados. Sua última “fuga milagrosa” aconteceu quatro dias antes de batalha de Acosta Ñu, quando caiu Piribebuy.”; “(…) as forças paraguaias se dividiram em duas: o marechal ia em uma coluna e, em outra, mulheres, crianças e idosos”, conta Chamorro. (…) Já Potthast cita outra teoria. “O que se diz, e não tenho motivos para duvidar, é que nessa batalha a função das crianças e jovens era servir como uma espécie de barreira para o avanço do Exército.” (…)Solano López conseguir mais uma vez fugir para o Norte com o restante das tropas, onde continuaram a resistência.(…) “De um lado estavam os brasileiros, com vinte mil homens”, escreveu Chiavenato. “De outro, os paraguaios, com três mil e quinhentos soldados entre nove e quinze anos, além de crianças de seis, sete e oito anos que também acompanhavam o grupo.”

“A batalha começou pela manhã e terminou cerca de 10 horas depois, com poucas baixas do lado brasileiro e quase nenhum sobrevivente do lado paraguaio.” (…) “As crianças de seis a oito anos, no calor da batalha, aterrorizadas, se agarravam às pernas dos soldados brasileiros, chorando, pedindo que não os matassem. E eram degoladas no ato”, (…) À tarde, quando as mães recolhiam os corpos dos filhos e ainda havia feridos, os brasileiros teriam queimado todo o lugar. O general brasileiro Dionísio Cerqueira, entretanto, que participou da batalha, deu outra perspectiva. “Que luta terrível entre a piedade cristã e o dever militar! Nossos soldados diziam que não lhes dava gosto lutar contra tantas crianças (…) O campo ficou repleto de mortos e feridos do lado inimigo, entre os quais nos causava muita pena, pelo número elevado, os soldadinhos, cobertos de sangue, com as perninhas quebradas, alguns nem sequer haviam atingido a puberdade”.

 

Centro de atendimento da Cruz Vermelha Internacional em Mazar-i Sharif, Afeganistão, 2008. As próteses destinadas as vitimas de minas da zona rural são feitas com material improvisado. Foto: Larry Towell/Magnum –swissinfo.ch***

Este escriba acredita que imaginários artísticos sejam uma parte mínima do saldo da dívida que têm com a verdade concreta  do  mundo através da alegoria da realidade: a imensa reparação histórica devida ao negro  como figura associada à escravidão.

Evoco um passado envolvimento emotivo com uma pessoa que vendia sanduiches nas madrugadas diante do teatro onde trabalhava em Milão. Fazia o dramaturgismo de O Asno de Ouro, de Lúcio Apuleio, narrando gente escravizada no império romano a carregar nas costas pedaços putrefatos de criminosos justiçados em esquartejamentos. Tais escravos falavam línguas latinas periféricas, do  galego ao romeno. Criava uma alegoria do que assisti quando do desminamento rural apos a guerra civil da Bósnia. Fiz notar que as minas eram recolhidas junto a membros mutilados  de vitimas infantis que um dia ali brincaram em seus campos. QUASE TODAS AS MINAS foram fabricadas no Brasil e na Itália. Não havia NENHUMA coincidência com o que aconteceu em Burundi, em Acosta Ñu, nas bidon villes latino-americanas, na Armênia, no Camboja; no mundo afora.

Meus textos escritos originariamente em italiano, eram, pela vendedora de sanduiches, vertidos verbalmente ao ator que os deveria dizer em romeno, a sua língua natal. Em disparte dos ensaios, ela pedia permissão para chamar-me com o nome de um seu noivo que  havia sido assassinado pela policia de Ceausescu na queda de  seu regime ditatorial na Romênia. Essa talvez tenha sido a maior experiência teatral de minha vida. Politica. Necropolitica. Viva.

O dia  em que fui defunto, serei defunto.

Bósnia, 1992. Foto: Gilles Peress/Magnum – swissinfo.ch

 

Principais autores referenciais citados neste artigo com obras na biblioteca

Antônio Abujamra (1932-2015) – diretor de teatro, ator e apresentador, sendo um dos primeiros a introduzir os métodos teatrais de Bertolt Brecht e Roger Planchon em palcos brasileiros. Era conhecido por sua irreverência, suas encenações e por seu humor ácido e crítico em relação aos tabus sociais.

 Lúcio Apuleio (125 d.C.) – narrador e filósofo médio platônico romano, autor do único  romance inteiro romano chegado aos nossos dias : O Asno de Ouro.  Nasceu em Madaura, pequena mas importante colônia romana  no norte da África.  Morreu em Cartago.

Gaston Bachelard (1884-1962) – Filósofo, epistemólogo e crítico literário, Foi professor de filosofia na Faculdade de Letras de Dijon e depois na Sorbonne (cadeira de história e filosofia das ciências). Foi também diretor do Instituto de História das Ciências e Técnicas.

Ivam Cabral (1963) – ator, Dramaturgo, Diretor, idealizador do evento “Satyrianas, uma Saudação à Primavera”, diretor Executivo da SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco.

Emilio Di Biasi (1939) é um ator e diretor com vastíssima atuação no teatro, televisão e cinema brasileiros. Tem solida formação também no teatro italiano

Michel Foucault (1926-1984) – filósofo, historiador do saber, teórico social, filólogo, crítico literário e professor da cátedra História dos Sistemas do Pensamento, no Collège de France, de 1970 até 1984.

Alberto Guzik (1939-2010) – crítico teatral, ator, diretor, professor e escritor brasileiro. Torna-se crítico teatral a partir da década de 70, no jornal Última Hora e no Jornal da Tarde Quando de seu falecimento, integrava a Companhia de Teatro Os Satyros. Mestre em teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, defende em 1982 seu mais importante trabalho teórico, a dissertação TBC: Crônica de Um Sonho. Professor de teatro na EAD, e na ECA/USP.

Immanuel Kant (1724-1804) – Alemão considerado o principal filósofo da era moderna; operou uma síntese entre o racionalismo continental europeu, e a tradição empírica inglesa de David Hume. Elaborou o chamado idealismo transcendental: todos nós trazemos formas e conceitos a priori (aqueles que não vêm da experiência) para a experiência concreta do mundo, os quais seriam de outra forma impossíveis de determinar. Publicou na Crítica da Razão Pura a noção onde um argumento transcendental pode mostrar que, apesar de não podermos saber sobre o mundo “como ele é em si”, podemos saber sobre “o mundo como ele nos aparece”. Prosseguiu a sua filosofia crítica com a Crítica da Razão Prática, que lidava com a moralidade de forma similar ao modo como a primeira crítica lidava com o conhecimento.

Benedetto Marcello, (1686 – 1739) – compositor veneziano, poeta, magistrado  e dramaturgo.

Achille Mbembe (1957) – teórico erudito e pensador das grandes questões da história e da política africana – apesar de, ele próprio, não se definir como “teórico do pós-colonialismo”; professor de História e Ciência Política na Universidade Duke (Virgínia, Estados Unidos) e na Universidade Witswatervand (Joanesburgo, África do Sul), além de investigador no Wits Institute for Social and Economic Research(WISER) desta mesma Universidade.

Pier Paolo Pasolini (1922-1975) – cineasta, poeta e escritor italiano. Em seus trabalhos, Pasolini demonstrou uma versatilidade cultural única e extraordinária, que serviu para transformá-lo numa figura controversa – até ser brutalmente assassinado.

Christiane Riera (1968-2012)  -crítica de teatro do jornal Folha de São Paulo em 2010 e 2011, com mestrado e doutorado em dramaturgia e crítica dramática pela Universidade Yale. Foi crítica colaboradora do jornal “The Village Voice”.Foi dramaturgista em “O Misantropo”, dirigida por Lisa Channer, e “Macbeth”, dirigida por David Kennedy. Trabalhou como consultora de roteiros para a Gullane Filmes, Cao Hamburger, Laís Bodansky e Heitor Dhalia. Coordenou os oito primeiros episódios da série “Alice”. Para a produtora O2, avaliava roteiros e coordenava a dramaturgia de longas-metragens, onde desenvolveu episódios para a série “Os Filhos do Carnaval” e “Antônia”.

José Carlos Serroni (1950) – Cenógrafo, figurinista e arquiteto especializado em espaços teatrais. Coordenou o Departamento de Cenografia da Rádio e TV Cultura  e o Núcleo de Cenografia do Centro de Pesquisas Teatrais do Sesc-SP. Autor de Teatros do Brasil” e “História da Cenografia Brasileira”. Coordena o Espaço Cenográfico de São Paulona SP Escola de Teatro.

Miguel de Unamuno y Jugo  (1864-1936) – ensaísta, romancista, dramaturgo, poeta e filósofo espanhol. Foi também deputado entre 1931 a 1933 – foi reitor da Universidade de Salamanca. Wikipédia

Bibliografia elementar:

Asinus Aureum     https://www.semanticscholar.org/paper/Quis-ille-Asinus-aureus-The-Metamorphoses-of-Title-Bitel/c4cff5ccf2ea1a72d91db41d3a952edd74a7c049

Historical Overview of the Khmer Rouge (em inglês). Disponível em <http://www.cambodiatribunal.org/history/khmer-rouge-history>. Acesso em: 23 abr. 2012.

Gaston Bachelard, La Poétique de l’espace, 1957 (La poetica dello spazio, trad. di Ettore Catalano, Dedalo, Bari, 1975, 1984; n. ed. rivista da Mariachiara Giovannini, ivi, 2006)

Achille Mbembe,  Crítica da Razão Negra; Necropolitica, M-1 Edições, Institut Français, 2018

Acosta Ñu: a sangrenta batalha em que crianças lutaram contra o Exército do Brasil na Guerra do Paraguai, Ana Pais (@_anapais)BBC News Mundo, 16 agosto 2019

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