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IDIOTA

Publicado em: 09/08/2019 |

1- O idiota ocupa lugar de destaque na literatura em geral, no folclore em particular, especialmente nos contos de tradição oral. Antecipando uma verdade inacessível aos demais, aos “não idiotas”, o (aparentemente) tolo é, muitas vezes, a voz da lucidez. Ele é figura que, sem pretensão, planta ironias e contradições nos enredos da ficção (e também fora dela).

Impermeável, talvez, aos labirintos dos processos secundários (que afastam o sujeito de um “estado indiferenciado original”, por assim dizer), o bobo conserva intacto o olhar naif, e o dirige a acontecimentos banais do cotidiano. Difícil é ser simples, disse um sábio.

Colado ao solo fértil de elementos primevos, nascente da criatividade, o idiota mantém uma relação singular com todas as coisas. Em seu dicionário, não há distância entre intenção e gesto. De maneira gauche, utilizando lógica peculiar, transpirando intuição e instinto, “sem querer”, o idiota decifra enigmas – e acaba por alterar os destinos de personagens de inúmeras obras. Via humor ou via inocência, o tolo é também a criança que declara: o rei está nu! A única criatura que vê o óbvio!

O idiota, na essência, denuncia tabus – e se equilibra na borda entre dois registros, que fazem oposição; entre a lei e a transgressão, por exemplo (de modo menos ingênuo, mas jogando na mesma fronteira, prestes a desabar, o bobo da corte também desafia limites – e deveria ser classificado como fundador da stand up comedy!).

2- O tolo funciona como um bicho que soltasse um vaticínio. Tal qual a coruja, ou o macaco, ele é capaz da clarividência dos processos primários, esses que vigoram no sono.

Os sonhos, vez por outra, antecipam acontecimentos: doenças orgânicas, por exemplo. São veículos da sabedoria do “soma”. Como se os fenômenos oníricos oferecessem, em estado de larva, previsões incrustadas no corpo, em forma de embrião, aguardando para serem libertadas. Alguém vai morrer? O sonho pode informar. Bastaria saber ouvir.

3- Note-se que em dezembro de 2004, no grande tsunami do Leste, antes das ondas gigantes atingirem a costa, vindas do mar, os elefantes, em bloco, se dirigiram aos pontos mais altos das ilhas/alvos do maremoto – e, assim, com esta tática, saíram ilesos da catástrofe. Eles “sabiam”!

Da mesma maneira, o idiota sabe muitas coisas. Sabe, por exemplo, se vai chover. Ou, então, antes do ultrassom existir, qual o sexo do bebê ainda na barriga da mãe. Sabe também, o idiota, se um vulcão entrará em erupção… Pois ele está ligado num canal encantado.

4- No encantamento, o idiota possui um radar de detecção. Ele percebe uma informação/estímulo que o atinge, sinal vindo do espaço cósmico, ou de um tempo paralelo. E guarda esse dado nalguma parte do seu ser, sob a forma de sensação (e não de memória). Bebendo na fonte de Morfeu, sublinhando o sensorial, o idiota dá um nó nas temporalidades, embaralha Kairós e Cronos, e tem o que dizer aos artistas que se dedicam às artes cênicas em geral. Senão, vejamos.

5- O corpo do ator tem uma relação peculiar com o chão. No teatro, muita analidade não presta: o ator não pode se dar ao luxo de ter nojo. Se ele tem de cair e morrer, deitado espumando, com a língua pra fora, num palco imundo, assim será. E se não houver intimidade com o chão, uma ligação estreita com o solo, as alquimias que o teatro almeja correm risco de desandar.

6- Oportuno lembrar o momento em que, na história da humanidade, o homem ficou em pé. Ele andava de quatro. E então. A postura ereta o afastou do chão – e trouxe consequências fantásticas e irreversíveis, em particular no que diz respeito à sexualidade: ao levantar-se do chão, o olfato foi recalcado e, com isso, sexo passou a ser atividade lúdica, brincadeira apartada da reprodução. Não é necessário mais aguardar o cio da fêmea, que o faro do macho identificava. Sexo, agora, vigora o ano inteiro – e, se calhar, coincide com fecundação.

Concepção, gravidez e parto… por acaso! Entretanto, nesse afastamento do chão, que a postura ereta inaugura, a sabedoria dos elementos se desfez. O solo ficou distante – e o “saber animal” se escondeu. É preciso recuperá-lo!

7- É conveniente que o artista seja um pouco como o idiota dos contos do folclore – interrogador involuntário dos mistérios. Mais que isto, no palco, ele deve converter-se numa espécie de andarilho sem teto, que desce ao chão sem parcimônia. Deixar de ser bípede, numa utopia.

Habitando o solo sagrado/profano com intimidade, é possível que ressuscite a antiga sabedoria orgânica. Apoiado num chão de sensorialidades, o ator refaz o canal de comunicação entre corpo e consciência – e revela verdades anteriores àquelas a que os processos secundários conduzem (tão “cerebrais”!).

Será mesmo o corpo do palco irmão do corpo da noite, sabedor daquilo que a vigília ignora? Bem a propósito, diz Ésquilo: o deus dá poder àquele cujo pensamento vem à luz a partir da noite humana.

Observação- Sempre da ordem do infantil e do (inconsciente) sexual, o sonho é realização de desejo, conforme aprendemos em 1900 (à exceção do que se passa no caso dos sonhos traumáticos). Porém, eis uma frase de Freud, de 1917: “Nos sonhos, a doença física incipiente é com frequência detectada mais cedo (…)”.

Para um estudo aprofundado do tema, remetemos o leitor ao nosso livro: “PSICANÁLISE FREUDIANA – A Metapsicologia da Atenção Flutuante”, ed. Giostri, SP, 2017.

Ali está desenvolvida com mais minúcia a ideia de que “o sonho é também manifestação do soma em imagens”. Uma equação que articulasse sonho/corpo/palco poderia nascer daí… E, quem sabe, ser contribuição e mapa para as artes cênicas. Para a solidão do ator em cena.

Ps – a) Somos atravessados pela cultura, antes mesmo do nascimento – de modo que as ideias de “recuperar a natureza” e “encarnar a intuição animal” (às quais nos referimos acima) têm de ser recebidas com cautela; b) A memória, ao reter e registrar, contém sempre algum grau de engessamento, do qual as sensações não padecem. c) O idiota que tomo aqui como objeto de reflexão é um idiota “benigno” (muito benigno!) – diferentemente dos idiotas malignos que abundam por aí, nos dias que correm…

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]