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Hugo Possolo, Dramaturgo

Publicado em: 02/10/2017 |

Nesta semana, reproduzo aqui o Prefácio que tive a honra de assinar para o livro “Eu Cão Eu”, de Hugo Possolo lançamento da Editora Giostri.

Hugo Possolo, Dramaturgo

“Eu Cão Eu”, de Hugo Possolo – que agora eu tenho a honra de apresentar em edição impressa –, é um dos melhores textos do teatro paulistano surgido nesta década que se inicia.

Até pensei que o mais bacana, talvez, fosse o Hugo ter chamado um psicanalista para escrever este prefácio. Porque a obra, tão poderosa, vai muito mais além do que, a partir de agora, tentarei discorrer. 

Mas, antes, e já que temos tão poucas oportunidades para deixar registradas coisas como admiração e, por que não dizer, amor, gostaria de iniciar este texto falando um pouco sobre o amigo-irmão Hugo Possolo e seu projeto, único – estruturado por outro tarimbeiro, Raul Barretto –, nos Parlapatões, o grupo que, ao lado do Satyros, (des)construiu uma nova maneira de pensar a cena contemporânea.

Sim, serei autorreferente, vocês já devem ter percebido. Porque é impossível pensar nos Parlapatões sem falar do Satyros, o coletivo que criamos, Rodolfo García Vázquez e eu, há mais de 20 anos.

Parlapatões e Satyros, especialmente no terreno da dramaturgia, abriram novas possibilidades para a nossa cena. Não só porque escancararam suas portas para a experimentação e convidaram o povo do teatro para ocupar suas casas, mas porque apostaram em novas investigações.

No Parlapatões, autores como Mário Viana (dramaturgo que escreveu especialmente para o grupo), Leonardo Moreira e Gero Camilo (autores que constantemente se apresentam na sede do grupo); e no Satyros, Sérgio Roveri, Alberto Guzik e Marici Salomão, só para citar alguns poucos exemplos, colocaram a dramaturgia brasileira no século 21.

Bem, eu dei indícios de que seria presunçoso. E me perdoem por isso. Mas, para falar da obra de Hugo Possolo, eu precisava primeiro contextualizá-lo. Afinal, comecei este prefácio dizendo que “Eu Cão Eu” é um dos melhores textos desta nova safra da dramaturgia nacional.

Porém, como posso continuar este raciocínio se o objetivo é apresentar, não justificar? Enfim, já que comecei, vamos lá.

Penso que a dramaturgia brasileira – com exceções, e é importante ressaltar – ainda estava conectada com o pensamento lítero-teatral do final do século 21. Sim, o dramaturgo, soberano, se fechava em seu gabinete e, num belo dia, revelava ao mundo a sua maravilha. Isso funcionou por muitos anos. E, embora não dando muito certo, continua ocorrendo – e não é só no Brasil, não, infelizmente.

Nelson Rodrigues, especialmente com “Vestido de Noiva” (1943) e depois com “Senhora dos Afogados” (1947), e outros bem poucos – Naum Alves de Souza com “No Natal a Gente Vem Te Buscar” (1979), Flávio Márcio com “Réveillon” (1974) e Luís Alberto de Abreu com “Bella Ciao” (1982) – são exemplos de trabalhos que tentaram voos mais audazes. Que, no entanto, não foram seguidos pelas gerações posteriores com mais regularidade, lamentavelmente.

Havia uma receita pronta: uma sala de estar, sofá. Quando superprodução, tapetes, janelas envidraçadas; agora, se a produção não tinha muito dinheiro, um sofá velho, uma mesinha com cadeiras e umas garrafas de bebidas espalhadas pelo espaço resolviam o problema.

O movimento teatral da Praça Roosevelt fez as produções pensarem de maneira mais ampla.  Conexão com o que acontecia no mundo? Afinal, na Alemanha, desde o fim dos anos 1980, Hans-Thies Lehmann já havia definido a sua teoria do Teatro Pós-Dramático. E, naquele momento, o mundo já tinha conhecido – embora no Brasil com menos eco – o francês Bernard-Marie Koltès e a britânica Sarah Kane.

A Roosevelt fez com que esses autores encontrassem coro. Tanto Parlapatões quanto Satyros apostaram em novas possibilidades dramatúrgicas para seus espaços. Resultados claros de uma poderosíssima revolução estética, creiam.

Então, a partir de 2007, as Satyrianas – o evento que organizamos anualmente na Praça para celebrar a chegada da primavera – resolve encampar o DramaMix,  um projeto dramatúrgico bastante singular, criado por mim e pelas Dramáticas em Cena, um grupo de dramaturgas, composto por Marici Salomão, Vera de Sá, Cláudia Vasconcelos e Beatriz Gonçalves.

Assim: 78 dramaturgos são convidados para escrever, especialmente para o evento, uma peça curta para ser apresentada a cada hora das Satyrianas. Primeiro problema: havia 78 dramaturgos ativos na cidade de São Paulo? Mãos à obra e chegamos a uma lista com mais de uma centena de nomes. Sim, alguma coisa já estava acontecendo por ali, nos arredores da Roosevelt.

Penso que o DramaMix seja o grande movimento da moderníssima dramaturgia destes anos que se vão. Porque, ali, dramaturgos conceituados como Lauro César Muniz e Renata Pallottini, por exemplo, atuam ao lado de jovens talentos. O DramaMix revelou, só pra citar dois exemplos, Zen Salles e Gabriela Mellão. Não é pouca coisa.

Hugo Possolo, o dramaturgo, eu começo a perceber aí, no DramaMix. Embora o moço já houvesse escrito outras obras, é nas Satyrianas que ele inaugura sua fase de experimentação em busca de uma dramaturgia autoral.

Eu acho que sei o porquê. Talvez por vir de um grupo, seus textos, até ali, eram pensados para prover seu coletivo. Sem a responsabilidade de criar algo potencialmente comercial, consequentemente, o terreno da experimentação acabou sendo o porto mais seguro.

Foi assim que, nas Satyrianas de 2011, nós assistimos, quase com espanto, à primeira encenação de “Eu Cão Eu”. Dirigido por Rodolfo García Vázquez e com uma interpretação arrebatadora de Gustavo Machado, o texto fechava a programação do evento daquele ano. A peça foi apresentada no Satyros Dois, num domingo, tarde da noite.

O público que lotava o teatro ficou impassível. Incrédulo também. Não apenas porque o que víamos era uma explosão de poesia, num terreno hiper-realista, mas, e principalmente, porque Hugo se revelava, definitivamente, um grande dramaturgo. E, coisa impressionante, bem diante de nossos olhos.

Se até aquele momento conhecíamos Hugo Possolo como ator, diretor e comandante de um dos grupos teatrais mais potentes da cena brasileira, era a vez de reconhecê-lo como um dramaturgo de excelência.

“Eu Cão Eu” é um solo, com cinco personagens: Eu Eu, Eu Narrador, Eu Cão, Cão Eu e Cão Cão. Uma história aparentemente simples, porém de uma complexidade que pode ir além das minhas assimilações. E talvez por isso eu tenha clamado, no início deste texto, que este prefácio fosse escrito por um psicanalista. Já que sua multiplicidade mereceria ser discutida com maior propriedade.

O argumento de “Eu Cão Eu” é aparentemente simples: um homem comum de classe média, num belo dia, decide, sem nenhum motivo aparente, seguir um cão de rua.

Trata-se de um homem com uma vida previsível, que tem um emprego e uma namorada razoáveis, com uma vida metodicamente organizada em seus horários e atividades, e que, por um impulso inexplicável, se deixa fascinar pelo cotidiano de um cão sujo e solitário do centro da metrópole. O que ele não prevê é que aquela decisão insólita de seguir aquele vira-lata fosse afetar radicalmente sua vida.

Pouco a pouco, o homem vai descrevendo suas aventuras pelo centro, o contato com as personagens solitárias e abandonadas que formam o cotidiano do vira-lata: o dono do bar, a prostituta de cabelo oxigenado, o menino filho do porteiro. Todos estes seres surgem num quadro bizarro de extrema solidão e desamparo.

Nesse ziguezague, entre idas e vindas, as personagens que surgem na vida do cão acabam se tornando tão emblemáticas quanto as pessoas que rondam o dia a dia do nosso anti-herói, também ele um solitário.

No decorrer do texto, aos poucos – e de forma engenhosamente elaborada –, novas personagens transbordam do protagonista, como animais erráticos que viviam escondidos dentro dele e, a partir do vira-lata, começam a se manifestar, em lampejos inesperados. A vida comum desse homem comum passa, então, a ser dominada tanto por esse vira-lata sujo quanto pelo animal que explode de dentro dele.

Em meio a seres abandonados no centro decadente da metrópole – a nossa Praça Roosevelt? – vemos este homem se confrontar com seu eu mais violento – por acaso nós, o povo do teatro? –, em uma rota que culminará num desfecho radical e surpreendente.

“Eu Cão Eu” é literatura e teatro de primeira grandeza. Com ela, reputem, Hugo Possolo mostra que a dramaturgia brasileira goza de boa saúde. E viva o teatro!