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Eu, bipolar

Publicado em: 02/10/2017 |

Foi proposital e estratégico o meu texto “O ano do ‘quem diria’”, na semana passada, nesta coluna. Um texto feliz, otimista, saudável. Para, hoje, ir no sentido oposto e revelar coisas muito íntimas que, quero crer, poderão ajudar pessoas. Falarei sobre afecções e existência.

Em 1999, eu tinha acabado de voltar para São Paulo, depois de muitos anos vivendo fora do Brasil, com passagem por Curitiba. Fui morar na rua Fernando de Albuquerque, vizinho do meu amado Alberto Guzik. Embora dividisse apartamento com o Rodolfo García, passava longos períodos sozinho. Rodolfo estava focado em seu trabalho na Alemanha, dirigia muito em Curitiba e ficava pouquíssimo tempo em São Paulo.

Um dia, deixei de ligar a tevê. E, sem que soubesse o que estava acontecendo, comecei a ter irritabilidade com sons. Louco por música desde sempre, ouvia meus discos em volume sempre muito baixo. E foi nessa época que defini: pelas manhãs, jamais música agitada; no máximo, uma MPB leve ou o rádio ligado em uma estação AM. À tarde, Célia Cruz, RME, Beatles. Leonard Cohen, Billie Holiday, Sarah Vaughan e Chet Baker, somente à noite. Ousassem me contradizer para ver o que acontecia.

Então – e sem pensar –, deixei de ir às ruas. Tinha uma diarista que vinha uma vez por semana e que resolvia meus problemas todos, inclusive bancários. Assim, passei quase dois meses sem abrir a porta do meu apartamento. Nesse período, ficava dias sem tomar banho e deixei de fazer a barba. Foi dessa época que herdei a mania de não atender telefone (um problema, problemão, mesmo, que até hoje me prejudica muito).

Nesse período, foi a minha diarista que atendeu um telefonema da minha mãe e contou a ela o que estava acontecendo. No dia seguinte dessa chamada, minha velha saiu correndo lá do interior do Paraná e veio me salvar. Quando ela chegou em casa, eu queria tudo, menos vê-la. Mas não era um sentimento de revolta, nem de raiva. Só queria ficar sozinho, mais nada.

Mas as mães são poderosas. Fez que fez e me convenceu a procurar tratamento médico, que imediatamente me diagnosticou: transtorno bipolar e, em estado elevado, misofonia, a intolerância aos sons. Foi aí que eu comecei a entender que estava vivendo no inferno.

Demorou para que eu me convencesse que precisava de tratamento sério. Porque, nesse início, as medicações pareciam sempre fazer o efeito contrário. A cada novo remédio, uma imersão às catacumbas. Duvidei dos médicos, me revoltei, interrompi e iniciei novos tratamentos, até que por volta de 2002 eu não tinha mais saída: era viver ou viver.

Somado a esse quadro, tinha acabado de vivenciar uma tragédia familiar. Meu pai, depois de uma batalha contra um câncer, havia falecido. E minha mãe, naquele momento – quem diria? – também desenvolveu um caso sério de depressão. Sim, ela estava doente e já não poderia se dedicar a mim.

Me lembro, também, que nunca tive coragem de contar isso a ninguém. Nesses níveis de detalhes, é a primeira vez que revelo essas coisas. Porque, durante anos, morri de vergonha deste meu diagnóstico. Neste período, me tornei brigão, desfiz várias amizades, percorri os subterrâneos e me isolei completamente. Pensava na morte o tempo todo e pouquíssimas pessoas conseguiam chegar perto de mim. Estava ilhado e sozinho.

Em 2003, um livro me salvou, definitivamente. Eu nem sei quem me indicou “O demônio do meio-dia”, de Andrew Solomon. Mas sua leitura me colocou um horizonte. Retratados, ali, depoimentos de pessoas que pensavam e viviam como eu. E o primeiro passo foi reconhecer, para sempre, que eu estava doente. Que minha alma era triste e que eu precisava cuidar dela.

Voltei ao primeiro médico, aquele que havia visitado com a minha mãe, e desde então tenho cuidado de mim. Entendi que, a partir daquele momento, não poderia viver sem remédios, nenhum dia sequer. E tive que aceitar, drasticamente, que a vida para mim nunca mais seria luminosa e feliz e que eu teria que conviver com a minha tristeza se quisesse continuar vivendo. E é claro que, quando se está nesse lugar, isso também não significa coisa alguma. Porque o desejo de nada e a negação da vida é recorrente.

Mas identificar que se precisa de ajuda é fundamental. A bipolaridade é das piores doenças e só quem passou ou passa por isso pode dimensioná-la. Carrega conteúdos destrutivos e joga a pessoa na sarjeta. E por ter visitado essas sarjetas muitas vezes, posso afirmar que não quero estar nunca mais nesse lugar.

Hoje, mais de uma década desde que a minha doença foi detectada, posso afirmar que estou bem. Porque a bipolaridade tem cura e tratamento. Estou no processo. Se ainda não sou capaz de dizer que a vida é linda e encantadora, posso vislumbrar coisas como “viver poderá ter valido a pena”. Já é um bom sinal e é o futuro que me interessa. No melhor sentido.