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As Palavras e as Coisas!

Publicado em: 02/03/2013 |

I – A chuva está ligada à narração de fábulas desde tempos imemoriais. Isto se deve ao fato de que o homem das cavernas ainda não possuía guarda-chuva nem linguagem. Ele apenas passeava em enormes prados. Quando chovia, era obrigado a ficar em casa. E ficava muito sem assunto, pois não sabia falar. Para quebrar a monotonia, começou a contar estórias. O homem inventou a linguagem por falta de assunto.

 

II – A palavra é matéria-prima do teatro. Mesmo que seja uma palavra muda e sem som (especialmente nesse caso). Mesmo que seja uma palavra-imagem. Nos palcos, a linguagem é elevada ao seu grau máximo de expressão, como se o dramaturgo a esganasse, pressionasse a linguagem à exaustão, obrigando-a a se reinventar. Reunindo – como se sabe – todos os campos das artes numa cena/acontecimento, que se dá em tempo real, o teatro é um buquê que contém em si mesmo música, literatura, dança, luz, gesto e muito mais. E, como na poesia, o que se vê no palco é a celebração da forma, mais que do conteúdo. Por isso é que a palavra calada e sem som tem ali valor maior. Por ser silenciosa, ela não fecha o sentido, mas se oferece aberta para que o espectador a preencha como puder, ou a deixe vazia, exposta, vulnerável, desafiadora. Evidentemente, som, luz e gesto são também linguagem, ou maneiras da palavra se exibir. O cenário e o figurino, por exemplo, são plenos de linguagens, que dialogam com a encenação, em pé de igualdade – e não meros coadjuvantes funcionando de modo cosmético.

 

III – A palavra carrega memória e uma dimensão sensorial que a liga ao corpo somático. Nascida na cerca que separa o humano do animal, apesar de fundar a cultura, a linguagem mantém seus vínculos intactos com a natureza e com as sensorialidades: as sensações do corpo. O campo das artes em geral, e o teatro em particular, tem sempre a tarefa de revelar essas conexões esquecidas e não tão evidentes da palavra com o corpo (e as outras ligações todas, em particular com a História e com a Memória): revelação do diálogo esquecido de logos com seu subsolo animal. É de Dionísio que Apolo se alimenta. A separação desses registros se dá à custa de um assassinato mítico…

 

IV – A palavra mata o objeto nomeado. Ela se afirma na ausência dele. Ela prescinde dele, por assim dizer. Este é o assassinato: a morte do em-si – mundo suposto anterior à linguagem – e a invenção do para-si – outro mundo, único, irrepetível, enviesado, construído pelo olhar singular de um sujeito (e por sua linguagem). Cada sujeito constrói seu mundo peculiar e idiossincrático, compartilhável somente até certo ponto.

 

Entretanto, por mais particular que seja o sentido de um mundo, a palavra sempre é marca de um acontecimento “real”, cheia de verdade: “até mesmo o delírio carrega uma verdade histórica”, disse Freud. A linguagem é a lenta memória da espécie humana, na qual – como pingentes num colar – vão se pendurando os fatos ocorridos, dolorosos e perdidos, no caminho da humanidade. A palavra nos salva da dor, razão de ser da psicanálise. Onde não há palavra, não houve [ainda] representação. Os buracos da representação são o sinal de um acontecimento de intensidade excessiva, para o qual não houve atenuante. Ultrapassou-se um limite perigoso: a nossa capacidade de metabolizar e absorver. Não há, por exemplo, como se sabe, em língua nenhuma, palavra que represente a mãe que perde seu filho. Dor animal. Essa condição de orfandade é um rasgo nas redes de representação. Trauma para o qual o simbólico não abriu as suas enormes asas, incapaz de fazer sombra ali, ponto em que a dor é desprovida de sonho [veja-se o pensamento de Radmila Zygouris, pensadora francesa… – “Uma palavra que falta”, em Ah! As belas lições. São Paulo, Editora Escuta, 1995, p. 109.].

 

V – Possa o teatro colocar em cena aquilo que ainda não ingressou no universo simbólico, aquele “isso” em estado bruto, excluído dos códigos, coisa sem nome, fazendo assim circular dores e segredos, intimidades privadas e públicas, as pré-palavras concretas, numa inauguração, tal como desejou Artaud…

 

Ps1- “isso” é a palavra usada hoje em dia, de preferência a “id”, para dar conta do quintal de pulsões do edifício freudiano! A porção dionisíaca da alma!

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]