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Diário da cena: o que acho dos bem-intencionados

Publicado em: 02/10/2017 |

Bem-intencionados: aqueles que têm boas intenções. Conheço muita gente assim: cheia de boas intenções. O problema é que não têm tensão. Boas intenções, sem tensionamento, não quer dizer nada. São os que não colocam a mão na massa, não dão a cara a bater, rezam o terço da vitimização, culpam o outro, culpam o país e o mundo. Vestem o figurino de bonzinhos. Mas não agem. No máximo sonham. Inertes. Sonhadores ressentidos. Ou ingênuos e ignorantes. Vêem o animal caído, atropelado e dizem: coitadinho. Alguém tem que fazer alguma coisa. E não fazem nada. Esperam que o outro faça, que resolva o problema, que aja. Conheço muitos assim: bonzinhos na retórica (a preservação do meio-ambiente, o oferecimento de uma arte generosa, o respeito ao outro, o valor da honestidade e do amor ao próximo), mas incapazes de mexer uma palha, de dar o exemplo, de criar um reflexo positivo sobre o mundo. Bem-intencionados sem tensionamento são nada.

E há o exatamente oposto: aqueles com excesso de tensionamento, mas mal-intencionados. Por sorte, conheço só alguns poucos assim, embora não saiba se são piores ou melhores que os bem-intencionados, que tentam achacar o outro com sua retórica babaca. Os mal-intencionados que conheço também são retóricos e poluem o mundo com seus achaques verbais: se auto proclamam os gênios da raça, vituperam contra tudo e todos, acham que só eles podem instaurar o novo (nada mais velho do que dizer isso em altos brados), criticam o que nunca viram, criam excessivamente suas obscuras “obras”, mas não exercem sobre o mundo nada de realmente relevante. Tornam a experiência artística um arroto colorido, sem o compartilhamento de fato de uma experiência possante que convide o outro à atividade. Nenhum código de acesso. Só excesso.

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Por falar em bem-intencionados, assisti ontem (16/9) ao “Os Bem-Intencionados”, do Lume Teatro, com Grace Passô (Gr. Espanca). Em cartaz no Sesc Pompéia, até o final de setembro. O espetáculo é mais do que promete o título. E nos estimula com alguns momentos soberbamente bonitos, com bufões em movimentos surreais em cena, com a dramaturgia desconstruída de Passô. A música, ao vivo, é palpitante. E ver o Lume em cena, com todos os seus ótimos atores e as atrizes, causa emoção. Mas a discussão posta em duas horas de espetáculo exige do espectador um esforço a mais. Tenta-se sair da primeiridade do discurso, mas é difícil. O que fica como marca é a coragem dessa emblemática equipe de tentar superar seus próprios limites como artistas, buscando na travessia com Grace Passô, o desvestimento das certezas impostas pelas escolhas de carreira, para “escorregar” pelo novo, pelo instável, por uma textura de cena sem molde, nem fórmula.

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