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De eloquentes radicalismos expostos

Publicado em: 06/10/2017 |

Caravana de Marco Polo viajando às Índias. Autor desconhecido.

 

MAURÍCIO PARONI
Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.2

Todo espetáculo transformador traz um segredo estruturado esteticamente pela sua exposição pública. Um tal espetáculo não é diferente do fluxo da vida real senão pelo fato de que a morte representa-se somente enquanto metáfora de si e da vida. Acontece porque é inelutável: morreremos um dia. Imaginamos, somente, como seria a nossa morte por jamais a vivermos. Uma vez mortos, estaremos incapacitados de sua fruição.

A prosseguir com o radicalismo desse ponto de vista: tudo o que acontece numa instituição, da faxina nos banheiros à mais alta elucubração de pensamento em seus bancos (e palcos, se for teatral), é performático, narrativo e político – adjetivemos como preferirmos.

Passo a expor uma progressão de exemplos radicais para que o leitor, se quiser, organize suas respectivas eloquências dentro de si.

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Nas história dos povos e de suas transações comerciais e as relações interpessoais:

I. Há uma parábola que Bertolt Brecht (1898-1956) ou Heiner Muller (1929-1995) certamente empregariam em suas poéticas cênicas se os seus contextos políticos assim o demandassem. Ou Artaud a incluiria tanto quanto a peste em seu “O Teatro e seu Duplo”. Trata-se da expulsão dos comerciantes do templo. Vejamos a narração de São João.

“ ‘Fazendo um chicote com algumas cordas,’ (…) expulsou a todos do templo, as ovelhas bem como os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas; não façais da casa de meu Pai uma casa de negócio.” (João 2:15-16).

Deixemos de lado a atávica justificação da violência pela ira supostamente santa que sempre acompanha a forma da parábola religiosa. Para não cairmos na dicotomia de antagonizar o comércio à Cultura, religiosa ou laica que seja, vamos ampliar o raciocínio utilizando o segundo exemplo.

II. Ideia inspirada por um compêndio de Nicola Savarese, um dos dramaturgistas de Eugenio Barba e de seu teatro antropológico, infelizmente sem tradução para o português, “Teatro e Espetáculo entre Oriente Ocidente”:

A língua franca do comércio entre Oriente e Ocidente foi uma linguagem espetacular: a mímica, que acabou estruturada em circo. As pessoas falavam línguas incompreensíveis entre si para operar transações de mercadorias, moedas, alimentos e saberes, através de signos corporais e vivências de risco. Estas corriam em paralelo na vida das caravanas e exércitos. A tal funcionalidade essencial agregou-se a diversão depois de um dia de trabalho ou de extenuante viagem. Esse fato cultural é a matéria prima principal de todo espetáculo circense contemporâneo, desde o mainstream Cirque du Soleil ao mais descolette dos teatros alternativos.

O marco inicial do teatro antropológico foi “Il Milione”, no Odin Teatret dirigido por Eugenio Barba (1936). Nascido da narrativa “O Livro do Milhão de Maravilhas de Mundo”, do explorador e comerciante veneziano Marco Polo (1254-1324), foi um espetáculo de gestos e palavras desconhecidas, mas próximas e presentes. A veracidade do livro sempre esteve sob suspeita – “Milhão” é o nome de uma máscara do antigo carnaval veneziano que representava o “contador de mentiras”. Marco Polo, no momento, de sua morte, jurou que todos os detalhes de seu conto eram verdadeiros.

Mesmo fora do contexto artístico, o alcance dessa dialética geográfica é extraordinário. Se formos a um restaurante de “cozinha contemporânea”, a viagem de 20 mil quilômetros realizada por Marco Polo caberia em poucos centímetros quadrados de um prato ou nas papilas de sua boca, leitor. Hoje, é possível saborear um sushi japonês ladeado por um seviche peruano com os mesmissimos peixes mas com diferentes sabores. Num pequeno prato, duas margens opostas do maior oceano do planeta. O Pacífico em seus lábios, literal, material e sem palavras. Uma escrita comum no nosso quotidiano. Marco Polo ficaria maravilhado. Cabe a nós não banalizarmos as possibilidades similares de tal amplitude linguística.

Num trecho do romance inaugural da literatura francesa, “Gargantua e Pantagruel” (**), de François Rabelais (1493-1553), um exército invade o país de Utopia. O gigante Pantagruel estica a língua como um guarda-chuva. Alcofribas — o narrador — aproveita-se para entrar na garganta do gigante, onde encontra campos e bosques habitados. A então recente chegada ao novo continente da América fica metaforizada na viagem a um desconhecido universo existente dentro do continente originário sob uma… língua!

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Estes, os exemplos intelectuais. Vamos aos mais próximos a nós, factual e geograficamente. São, também, constitutivos da prática pedagógica da SP Escola de Teatro:

III. A feira do ADUS (***) hospedada pela Escola mostrou peças artesanais ligadas às culturas das famílias de refugiados, apresentadas por eles. Perfumes árabes, luminárias sírias e a arte em henna paquistanesa; tecidos senegaleses e nigerianos. Objetos concretos apresentados por pessoas reais são a metáfora de suas existências inseridas num contexto de conquista pacífica de existência no mundo.

A arte nasce e se desenvolve há milênios somente num contexto desses, como a vida existe somente se houver água e carbono. Num viés feliz e alegórico, a presença é pedagógica.

III. Num viés mais dramático, o prédio da sede Brás da Escola é circundado pelo comércio informal realizado por haitianos, bolivianos, sírios e migrantes de várias outras nacionalidades. A presença física da escola ali confere importância político-urbana a esse fenômeno. É, por exemplo e não por acaso, o mais eficaz deterrente da contravenção.

São estrangeiros cuja situação precária de sobrevivência os obriga a serem mascates de bugigangas ilegais como “fake Adidas”, capitalizadas por uma camorra de contrabandistas que os usam como escudos contra a fiscalização. Fala-se francês, castelhano, criolo, quechua e se faz muita mímica. Se mais assimilados culturalmente, mais poderiam contrapor-se a um sistema de inócua vigilância e punição; uma cultura de sobrevivência em ausência do estado.

A cultura educativa é o meio de estado mais eficaz para estabelecer um projeto de nação. Uma enérgica asserção política da concretude de seu significado produz também o único futuro que pode evitar a selvageria presente.

 

 

(*)Nicola Savarese (Roma, 1945) é um historiador do teatro. Foi docente de Teatro e Artes Performáticas nas Universidades “La Sapienza”, na de Roma III, na de Lecce e na de Bolonha. Na década de 1980, nas Universidades de Quioto e Montreal e na Sorbonne em Paris em 2005. É membro fundador da Escola Internacional de Antropologia Teatral (ISTA) de Eugenio Barba.

(**) Gargantua e Pantagruele foi escrito por Rabelais com uma linguagem satírica e viva e publicado em 1542 sob o pseudônimo e anagrama Alcofribas Nasier. Pantagruele goza livremente da existência com vitalidade desenfreada e livre da mentalidade medieval. O prólogo do romance, dirigido aos leitores, adverte: “E, lendo, não se escandalize: / Não há nenhuma doença ou infecção aqui. […] Melhor é o rir que escrever[…]”. O mito classicista do equilíbrio é derrubado na mistura de linguagem literária com linguagem falada (incluído o uso de termos vulgares), do áulico com paródia, neologismos, hipérboles e paradoxos.

(***) Fundado em 2010 por Marcelo Haydu, o Instituto de Reintegração do Refugiado – Brasil ajuda estrangeiros a se adaptarem a nova vida no país.