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Carlo Bertolazzi (1870-1916): um teatro social 

Publicado em: 19/11/2019 |

Chá e cadernos 100.16

Mauri Paroni

Mariangela Melato in “El nost Milan” di Carlo Bertolazzi al Piccolo Teatro, regia di Giorgio Strehler, foto: Luigi Ciminaghi (1979)

 

Este autor de teatro dialetal é Milanês – não da “Milano da bere” (para beber)b de hoje, rica – mas da pobre e iníqua cidade dos seculo XIX, dos anos  40/50 do Século XX. Do recém fundado Piccolo Teatro, por Gianni Ratto, Giorgio Strehler, Paolo Grassi, o chamado teatro estável que deveria prover um serviço cultural à sociedade que estava inserido. Propunha do alto italiano ao dialeto. Teatro dialetal. Sem muita novidade: o teatro dialetal existe desde as comédias giróvagas dos mimos do tardo império romano. Artesanato milenar, responsável pela grande tradição interpretativa italiana, foi – e é – ideologicamente desprezado pelo mundo burguês através da fetichização de uma “arte” empregatícia de dicção “profissional” falsamente fundada numa língua escrita no gabinete.

Este trecho abaixo, de “EL Nost Milan” (“A Nossa Milão”- houve uma antológica montagem por Giorgio Strehler no Piccolo Teatro, em 1956, na reconstrução da sociedade italiana do pó Segunda Guerra), é um exemplo de teatro realista; nasce na mesma matriz do cinema neo-realista quase todo ele dialetal também, com a diferença que a palavra aqui corresponde à importância da imagem no cinema. Portanto, a presente tradução não pretende, e nem deve gerar, o  retorno a um filme neo-realista; mas fica como exemplo da maestria dos autores peninsulares por um teatro popular refinado e técnico. Além de ser precioso para a compreensão de como nasce um roteiro neo-realistano cinema.

Aqui, seleciono o momento em que Nina, a filha do malvivente Peppon, decide de ir atrás dos “sciuri” (senhores, em milanês, ou seja, bacanas). Qualquer semelhança com o Brasil… Enfim, podemos aprender muito de tais autores (de Eduardo até Pirandello). Com certeza Gianfrancesco Guarnieri, o grande dramaturgo do Teatro de Arena, ele mesmo nascido em Milão,  praticava esse tipo de dramaturgia. O Arena tinha esse grande DNA.

Trecho de ‘’El Nost Milan” (1893)

Peppon [Pedrão] (Tomado pela emoção, vai para perto da filha. No começo, gagueja, não acha as palavras, depois fala com um choro na voz típico de quem esta ofendido no que tem de mais precioso, no orgulho da pessoa do povo, no fundo, honesta).

 – Nina! Ouça-me bem, olha, estas são as ultimas palavras do teu pobre papai. Que agora vai para as mãos da justiça… acredite, por favor, (forte) continua esfarrapada, passa fome, mas não vá com eles, não vá com os bacanas, pelo amor de Deus! Está vendo, só de pensar nisso acho que eu vou ficar louco! Não vá com os bacanas!

Nina (Devagar, quase separando as silabas)

– Não, já decidi, papai, já decidi mesmo! (Enquanto ela fala, o pai a observa, antes com surpresa e depois, assustado; ao final, vencido, consente, com sinal de cabeça, subjugado pelas razoes da filha. Nina encontra uma entonação estranha. Em sua voz revela-se toda uma resignação desesperada). É inútil alimentar ilusões. Olha, agora vou te falar como nunca te falei! (aparentemente calma.) De um tempo pra cá, me sinto de vez que virei outra menina, muito diferente! Não sei não, parece que eu tenho um pedaço de pedra no lugar do coração! Vou te dizer tudo antes que a gente se separe pra sempre. (Com tristeza crescente) Ta’ vendo o que virei, tudo de uma vez? Já não tenho medo de mais nada, digo coisas que nem eu sei; passei muito desgosto. (Comove-se sem perceber) Se eu era boazinha, papai, era boazinha faz tempo! (pausa). Você começou  a errar por ter me criado sem dizer o que você era; (Vendo que o pai procura se defender). Deixa, deixa que eu tiro da cabeça isso d’ uma vez, vou desabafar, depois você se defende! Lembra? Eu ficava sempre em casa, ou numa vizinha qualquer, você chegava tarde e me trazia sempre alguma coisa gostosa… Aí eu ficava bem! Era tratada como uma bacana! (Docemente) Mas eu sabia que você não trabalhava, que você tirava a comida da tua boca pra deixar pra mim! E que quando te levaram pro hospital, um belo dia a vizinha me põe pra fora da porta, você lembra? Fui te visitar. (Pausa) Perto da tua cama havia um velho, você me deu um beijo e me disse “vai com ele!”, Ele era o pai do Rico! (pausa) Fiquei lá um mês na rua, assim, ajudando os outros, porque eu não era boa na dança; enquanto isso você ficou bom e saiu dali. Eu, depois de um mês, não era mais eu: o Rico tinha me enfeitiçado! (Com paixão e transporte) Ah, meus Deus! Como eu gostava daquele homem! A única pessoa que eu amei nesse mundo, a única! (Áspera) Porque a gente não pode ficar junto? Porque foi eu não pude me casar como todo mundo? (com dor) Porque eu era filha de ninguém, sem grana, sem nada, uma miserável! (Pausa, abaixa a cabeça cheia de lagrimas. Fala aos soluços.) O Rico morreu tísico no seu barraco, enquanto eu chamava ele pra fora, para a gente se divertir um pouco! Foi o que foi… (Fala, rouca, aos poucos) Conheci o Carlão (Com ódio), esse bandido nojento! Que não me deixa nem respirar! Você odeia ele, n’ é, pai, você odeia ele, mas precisa que eu fique com ele, que eu goste dele! Quando ele me olha na cara, eu tremo toda pra ele não me levantar a mão! Mas eu me cansei, não agüento mais: passo fome direto! (Com amargura crescente). Direto! Sempre! (Esforça-se para sorrir; pausa) Anteontem vi o Moreno numa carroça! Ia pro centro! Subi na carroça, não agüentei mais, e fui dormir na Marina! (Pausa, com um sopro de voz). Amanha ela vai me apresentar pr’um senhor, pr’um  engenheiro, daqueles de cartola; que vai me  vestir como  uma senhora! Quero virar uma bacana, comer do bem-bom, beber vinho e dormir embaixo duma coberta! (Quase resignada) é inútil, você também sabe, você pode ver e tocar isso de verdade:  (Com tristeza imensa) Gente pobre como a gente não pode escolher nada nesse mundo; se a gente pensar bem, precisa ou passar fome ou matar, aí ir pra cadeia ou… fazer como eu! O que falta mais pode fazer? O que? Diz você, se você é bonzinho. Você e seus colegas gritam contra os bacanas mas continuam mascando amargo. Se tanto, tem um pouco pra ti, mas devia ter pensado na tua menina e ter feito uma vida menos ruim. O que foi? Vou me arranjar como posso! (Animando-se) Eu também tenho direito de gozar um pouco desse mundo, sou igual às outras, tal e qual! (Chega ao choro) E quando vem a tristeza, quando eu também sinto alguma coisa aqui dentro, que parece que quer pular pra fora, então, jogo fora tudo quanto é mau pensamento, e volto a ser malvada, (Chora) sem coração e sem sentimento. Não olho mais nada, estou cansada de sofrer, tou cansada de ficar nessa vida!