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Antonin Artaud: O Rito, O Corpo e a Exposição dos Estados

Publicado em: 02/10/2017 |

O teatro, como rito, é o lugar onde a reconstrução do corpo se dá. Tanto para os atores quanto para o público. Assim, devemos transitar sempre pelo estado de desorganização e saber como sair dele, buscando o equilíbrio entre o dionisíaco e o apolíneo. 

A cineasta e ensaísta Susan Sontag diz em seu artigo “Abordando Artaud” (1), publicado no Brasil no livro “Sob o Signo de Saturno”, que Artaud é o mais visceral e sincero de todos os modernistas, mas que, ao se tornar “clássico”, seu impacto teria sido “neutralizado”.

Antonin Artaud (1896-1948) escreveu compulsivamente. Suas obras completas estão hoje editadas em 27 volumes. E, nesses tempos que se vão, sua figura, ainda que lentamente, tem se mantido sempre presente. Mas a mistificação que se faz em torno de sua imagem, em especial de sua biografia, tem atrapalhado sua compreensão. Essa simplificação é empobrecedora e também perigosa porque toda a sua obra vai em direção exatamente contrária. Talvez por isso Artaud tenha acabado por se consolidar em sua própria identidade de moderno e clássico.

Ao contrário de outros artistas que se preocuparam mais com o método, Artaud se ateve mais ao conceito. Martin Esslin irá dizer:

Se Artaud forma entre os mestres modernos, não é nada fácil dizer em qual das categorias reconhecidas de realização cabe sua contribuição. Ele não é um pensador, com o crédito da produção de um corpo coerente de conhecimento original ou de haver rasgado novos campos de pesquisa; nem foi um realizador, um homem de ação, um herói manipulador de acontecimentos, influente sobre o curso da História; e embora tenha sido certamente um poeta de grande poder, não é sua poesia que lhe explica a influência.(2)

A leitura da obra de Artaud não deixa ninguém ileso. Nela, os afetos são milimetricamente atingidos e a questão da identidade é que está sendo colocada em xeque. O que se vê na trajetória de sua escrita é uma sucessão de estados, um fluxo, um devir; nem tanto uma identidade.

Sua contradição é o que gera tensões. Sua proposta dramática, por exemplo, está no entroncamento do teatro e da performance. Artaud abominava a ideia de que “o teatro não passa de um simples lugar de entretenimento”.(3)

Para Artaud, o teatro propõe a vivência de uma experiência, e não uma regra fixa, porque tudo o que atinge uma forma fixa já está distante dessa experiência. O teatro, como Deus, está além das formas.

O ateísmo artaudiano também é muito peculiar. Ao negar a figuração do ser transcendente, sua heresia é uma forma de recuperação. Só assim o mito pode ser confrontado e, dessa forma, revelado.

O pensamento nietzschiano está presente em sua escritura, em especial na leitura que o filósofo alemão faz de Heráclito em “A Filosofia na Época Trágica dos Gregos”:

O eterno e único vir-a-ser, a total inconsistência de todo o efetivo, que constantemente apenas faz efeito e vem a ser, mas não é, assim como Heráclito o ensina, é uma representação terrível e atordoante, e, em sua influência, aparenta-se muito de perto com a sensação de alguém, em um terremoto, ao perder a confiança na terra firme. (…) Um vir-a-ser e parecer, um construir e destruir, sem nenhuma prestação de contas de ordem moral, só tem neste mundo o jogo do artista e da criança.(4)

Mas é a questão do corpo em Artaud que tem permeado toda a sua obra, desde os primeiros escritos. Esse corpo também segue a concepção dionisíaca nietzschiana. Um corpo sem órgãos, que se despedaça e se recompõe, constante e intermitentemente. Nesse dilaceramento sempre acontece a perda da identidade.

Mas esse corpo precisa ser refeito e estimulado a todo instante porque ele “é como uma pilha elétrica” (5), disse certa vez. Uma revolução anatômica que venha de dentro para fora e se jogue no eterno devir do rio da vida. Talvez esse seja um dos mais importantes ensinamentos do mestre francês. E quando nos propõe essa consciência do corpo, está querendo promover uma verdadeira revolução metafísica.

Trata-se, de fato, para Artaud, de separar o corpo de todos os “objetos parciais de Deus”, isto é, os órgãos: o corpo que dança mitos e delírios (…) que significa um duplo, um espectro plástico, nunca acabado, construindo-se através da identificação cruel com seu corpo pleno.(6)

O teatro, como rito, é o lugar onde a reconstrução do corpo se dá. Tanto para os atores quanto para o público. Assim, devemos transitar sempre pelo estado de desorganização e saber como sair dele, buscando o equilíbrio entre o dionisíaco e o apolíneo.

Mas é importante que se diga que Artaud, quando propõe esse rito, está se referindo a uma entrega absoluta – tanto do público quanto dos atores; e nunca a uma cópia. Um comprometimento de ambas as partes como poder de ação; não como representação, mas como experiência. Assim, fazer parte desse ritual é vivenciá-lo em sua profundidade.

O teatro é, antes de tudo, ritual e mágico, isto é, ligado a forças, baseado em uma religião, crenças efetivas, e cuja eficácia se traduz em gestos e está ligada diretamente aos ritos do teatro, que são o próprio exercício e a expressão de uma necessidade mágica espiritual.(7)

Sabemos que o corpo tem níveis muito sutis. Para Artaud, interessam as microssensações e a consciência que deve mergulhar nos campos da angústia, abdicando da certeza. E para se entrar no campo de observação desse corpo é necessário que se tenha um método.

Artaud não nos deixa esse método. Ao nos deixar apenas rastros, pegadas, inspira-nos a encontrar nossos próprios caminhos, tal qual Nietzsche em suas obras alegóricas, como “Assim Falava Zaratustra”. Se a verdade é impossível, por ser sempre um ponto de vista, uma perspectiva de um todo, a escrita filosófica ou a reflexão teatral apenas podem nos deixar insinuações da verdade que procuramos.

Assim, sua obra não é um produto. Antes, é um campo vasto para a reflexão e a busca do artista.

Em certo momento, ele nos fala da “exposição dos estados”, propondo o mergulho e a investigação do caos, como um espírito de autoinvestigação. Irá dizer em um de seus textos: “Sou arrastado, mas me assisto.” (8) Esse “ser arrastado” está intimamente ligado ao “ser arrastado” dionisíaco, presente na obra de Nietzsche.

Para Nietzsche, o auge da tragédia grega e da cultura ocidental está justamente presente no período anterior à influência socrática, em que o apolíneo, com seu controle e identidade, era mesclado ao dionisíaco, processo de ritual de embriaguez em que a identidade se perdia no mergulho dentro do rio dos acontecimentos e da não-identidade.

É desse mergulho que emerge sua linguagem. Porque não é uma mera descrição psicológica; é uma descrição de estado, quase impessoal – uma forma de interpretar o interior.

Roland Barthes, o grande pensador das formas de comunicação humana, vai recuperar o pensamento de Artaud ao relacionar corpo com tecnologia. Sugere, assim, o “fim do sujeito” – nesse caso, o do próprio indivíduo. Dessa forma, Barthes crê que o corpo só se reconcilia com a linguagem através de uma via indireta, em que a fruição retorna ao lugar do pensamento.

Todas as épocas viveram a ideia do corpo coletivo e o poder sempre passou por esse corpo. Artaud acredita que para desbancar os mecanismos do poder deve-se pensar que o foco de ação pode ser cultivado. Assim, esvaziado, esse corpo poderia reivindicar sua experiência e outros matizes seriam detectados. Esse “vazio” é referenciado como “fonte”, não como “vida”. Porque esse “interior esvaziado” traduzir-se-á em imagens, não o descrito pela anatomia. No corpo sem órgãos, primeiro é necessário que se esvaziem os automatismos. Assim, a experiência do corpo é de uma natureza também subjetiva.

“O corpo é uma multidão excitada” (9) de fenômenos e de impulsos, e sempre foi educado, formado para produzir, adaptar-se a alguma condição social. Assim, é fácil supor que podemos viciá-lo ou escravizá-lo. Restam poucas opções ao ser humano.

Paralelamente à análise marxista da alienação econômica do indivíduo, Artaud busca a desalienação metafísica do ser. Tornar o homem de novo consciente de seu corpo, de sua mente, de seu lugar, através do ritual mágico do teatro.

O corpo-utensílio do trabalho capitalista deixa de ser objeto para tornar-se sujeito da sua própria ação, de seu espírito. A experiência do teatro, segundo Deleuze ao referir-se a Artaud, seria o espaço para essa desalienação, tanto da parte do ator-agente do ritual, quanto do espectador participante.

Esse corpo é tanto biológico quanto coletivo e político; é sobre ele que os agenciamentos se fazem e se desfazem; ele é o portador das pontas de desterritorialização dos agenciamentos ou linhas de fuga. O corpo sem órgãos varia (o da feudalidade não é o mesmo que o do capitalismo). Se denomino corpo sem órgãos, é porque ele se opõe a todos os estratos de organização, tanto aos de organização do organismo quanto aos das organizações de poder.(10)

Qualquer construção é sempre precedida de uma completa desorganização porque ela é sempre forjada. Quebrar os hábitos já cristalizados, as muletas, o automatismo e a consciência, que sempre empobrece as sensações, é um dos caminhos. Um jogo entre a instabilidade e a organização nos pode levar a um contato profundo com nossa verdade, que está se refazendo, constantemente.

O corpo, portanto, é um lugar; e testemunhar seu processo é elaborar-se, recriar-se para libertar-se do jugo da alienação. E quando pensamos na reconstrução do corpo, podemos entender nossa própria reconstrução. Porque o corpo tem um sentido muito mais abrangente do que inicialmente percebemos.

A construção artaudiana do corpo integra uma “anatomia decorporizada”.(11)

A arte pode fazer o trânsito entre os diferentes polos de compreensão de nosso corpo e possibilitar as vivências desses estados.

Essa busca pelo corpo esvaziado também está relacionada ao projeto psicanalítico freudiano, em especial na leitura de Reich, de que o corpo está desfigurado pelas couraças de nossos traumas inevitáveis.

O real sempre nos impõe traumas, que acabam por nos moldar ao mundo real. O processo reichiano de libertação das couraças busca justamente a melhor fruição do prazer e, portanto, um encontro do homem com seus próprios desejos.

Essa terapêutica da alma pode ser encontrada no projeto do teatro artaudiano. O teatro da crueldade busca uma elevação espiritual que concorre, em paralelo, à noção de terapêutica reichiana do corpo.

Foucault, posteriormente, vai abordar a questão do corpo que sofre as opressões dos micropoderes sociais. Esse corpo manipulado e inconsciente de suas limitações pode, através de Artaud, libertar-se de suas amarras.

Finalmente, em tempos como o nosso, em que o capitalismo transforma em produto para consumo o nosso próprio corpo, a experiência do teatro artaudiano seria radicalmente revolucionária. O corpo, nos tempos pós-industriais, já pode ser comprado, refeito, remodelado, redesenhado de acordo com os desejos do consumidor-cidadão.

A experiência artaudiana do corpo propõe a quebra desse elo consumidor-fabricante, para atingir uma relação de visceralidade que suplanta a relação comercial. O corpo do ator, assim como o do espectador, não é uma imagem de consumo, mas um templo onde acontecem as experiências vitais, sagradas.

(1) Susan Sontag, “Sob o Signo de Saturno”, Porto Alegre, L&PM Editores, 1986, p. 15.

(2) Martin Esslin, op. cit., p. 12.

(3) Idem, p. 72.

(4) Friedrich Nietzsche, “A Filosofia na Época Trágica dos Gregos”, in coleção Os Pensadores, Nietzsche II, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1987, pp. 9-10.

(5)  Alain Virmaux, “Artaud e o Teatro”, São Paulo, Editora Perspectiva, 1978, p. 329.

(6) Daniel Lins, “Antonin Artaud – O Artesão do Corpo Sem Órgãos”, Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000, p. 57.

(7) Antonin Artaud, “Linguagem e Vida”, São Paulo, Editora Perspectiva, 1995, p. 75.

(8) Idem, p. 210.

(9) Idem, p. 199.

(10) Gilles Deleuze, “Desejo e Prazer”, Paris, Magazine Litteraire, 1994.

(11) Daniel Lins, op. cit., p. 69.