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As bengalas da humanidade…

Publicado em: 05/09/2014 |

I- Ninguém escapa ileso ao espetáculo teatral “Pessoas perfeitas”, a nova erupção do vulcão criativo dos Satyros!

 

Entre muitas leituras possíveis, talvez valha a pena tomar o caminho que enxerga na pesquisa da companhia uma discussão sobre os clichês da contemporaneidade. Explico!

 

Em “Pessoas perfeitas”, o grupo resgata a vida soterrada por debaixo dos chavões que se multiplicam por aí e engessam nossos dias. Os estereótipos não são só linguísticos; são também comportamentais: entulhos e entulhos que recobrem nossa solidão.

 

Os Satyros recuperam aqui – como em outras investigações – aquilo que há de mais humano nas pessoas que circulam pela cidade, que cruzam cotidianamente nossos caminhos; sobre as quais lançamos olhares de indiferença: aos anônimos, um olhar anônimo – para que não haja risco de qualquer identificação.

 

Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, com incrível facilidade, transformam clichês em poesia. Mas, como eles fazem isso?!

 

Eles parecem escutar (e libertar) histórias pessoais que a doença da cidade e os discursos produzidos por ela ocultam: memórias, planos, projetos, sonhos, desejos, enganos, desencontros, dores… Elementos excluídos do campo. Deslegitimizados.

 

Um pouco talvez como o consultório de Psicanálise, esse Teatro antenado com nosso tempo revela as minúsculas misérias nas quais estamos enfiados. Minúsculas e enormes ao mesmo tempo, pois é redentora a operação de dar singularidade a essas vozes massificadas. E é imenso o gesto de ouvir murmúrios que hibernam no subsolo do senso-comum. Lençol freático resistente à desertificação…

 

Neste espetáculo, vemos escancarados nossos tristes dias, em que é proibido não ser feliz. E, nessa medida, o título irônico do espetáculo, “Pessoas perfeitas”, não poderia ser mais “perfeito”!

 

Diferente do psicanalista, entretanto, os artesãos do Teatro têm maior ambição e maior alcance. Poderão curar a cidade?! A pergunta é ingênua, mas a resposta não é óbvia (veja adiante a questão recolocada).

 

 II- Os clichês são impessoais, grassam por aí, se multiplicam e são virais. Empesteiam nossa Era! São introjetos alienantes que engolimos e, sem nos dar conta, repetimos por aí. Vomitamos diariamente na rede! Sem mediação.

 

São fragmentos inespecíficos que escondem nossas singularidades e, justamente por isso, desumanizam. Pois o que quer nos defina como gente é estrangeiro aos discursos de massa: nossa “essência” está fora desse circuito viral! E se não nos recortamos do lugar-comum, somos condenados a aderir a frases-feitas – que oferecem ilusão de pertinência, ao custo de pobreza despersonalizante. O clichê é uma bengala – sem a qual pensamos que vamos cair.

 

Pois bem. É notável o talento dos Satyros em identificar a ditadura de estereótipos: arrancando clichês que a cidade produz, como lixo, eles encontram matéria humana. Encontram profundidade e espessura, ali onde acreditávamos estar pisando a esterilidade do lugar-comum. Por ser inesperada, essa descoberta tem impacto sísmico e faz o chão tremer. E a rapidez com que os Satyros fazem isso é atordoante, numa inversão (veloz!) que – pelo contraste – nos faz perder o ar.

 

Um exemplo. Marta Baião, excepcional como a personagem Cacilda, distribui platitudes do começo ao fim da peça. Subitamente, porém, ela solta uma frase: eu não sei onde eu encontro coragem todo dia pra levantar sem ter notícia desse menino! Essa fala dura um segundo, mas concentra uma densidade de dor e solidão espantosa – sobretudo porque a atriz a diz com economia (onde poderia decidir gritar) e se dirige a uma espécie de amiga imaginária, que nos faz compreender de supetão que o caricato da personagem é defesa que a permite suportar o filho ausente.

 

É enganosa, portanto, a comicidade das cenas de “Pessoas perfeitas” (e de todas as peças anteriores que o grupo produziu); o cômico é quase traiçoeiro: num salto, do clichê à singularidade, caímos em desgraça. Pior: tudo nos seduz no espetáculo – e, quanto mais nos encantamos, mais dramático, logo adiante, será nosso tombo! É fundo ali, onde julgávamos raso, esse é nosso engano que a peça denuncia…

 

“Pessoas perfeitas” é um grande acerto, como há tempos não se via, também por outras razões: a maquiagem dos atores, impressionante, remete à plasticidade de Bob Wilson. Da máscara à expressão humana. Outra vez! Do clichê ao poético!

 

O texto (de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez) é primoroso, com passagens dramaturgicamente fantásticas. Rodolfo García Vázquez é um encenador em cujos trabalhos – já é tradição – a luz tem força poderosa e dialoga em pé de igualdade com as outras linguagens. Aqui não foi exceção: junto com Flávio Duarte, a iluminação é, simultaneamente, discreta e extraordinária.

 

E, nesse espetáculo, a direção de elenco, em particular, resultou tremenda: os atores estão “perfeitos” – todos, em conjunto – e parecem alimentar-se do vigor uns dos outros…

 

Muito resumidamente, além de Marta Baião: Julia Bobrow (Medalha) compõe uma Poliana caipira e mística, sustentando uma mistura de ingenuidade e otimismo descabido, no diapasão de uma inocência quase débil; Henrique Mello (Binho), na maturidade de ator, é senhor absoluto de suas cenas – e mesmo quando grita, não descarrila (não são muitos os atores a quem os deuses dão essa permissão!); Fábio Penna, imenso como poeta decadente e maldito, tem momentos especialmente tocantes (veja um deles adiante); Adriana Capparelli, desenganada, opera no limite, e fumando e cantando (e como canta bem; e como fuma bem!), joga-nos num cabaret esfumaçado de desesperanças; Eduardo Chagas é inacreditável no papel de um marido hesitante (Robalo). Através da fragilidade desse homem frouxo que o ator constrói, assistimos a uma aula de atuação – de como brilhar tanto, encarnando um personagem tão inexpressivo; as violoncelistas (Alessandra Giovannoli e Rebeca Friedmann) são vultos mudos capazes de, através das cordas, falar outras línguas, numa genial metáfora do Alzheimer; finalmente, Ivam Cabral, sem vaidade, como tem de ser no palco, quase monstruoso, retorce o rosto (os rostos) e injeta traços de infantilismo em seu personagem (Ruy). Somando isso a uma feminilidade frágil, desdobra-o em Sarah. Desse modo, num caleidoscópio de vozes, mostra porque Guzik o considerava “ator de rara ousadia” que “se atira na criação sem rede de proteção” [sic].

 

O espetáculo nos conduz até algo como um destino trágico, inescapável, escondido por um mantra de repetições banais, detectadas na língua, que o faro da trupe revela e tira dali, pra fazer brotar verdade. Fazer brotar humanidade!

 

Tanto aqui, quanto noutros trabalhos, os Satyros constroem algumas passagens de rara beleza. Sublinho, a seguir, duas dessas passagens; a primeira delas de “Pessoas perfeitas”, a segunda de “Cabaret Stravaganza”, outro grande espetáculo recente do grupo.

 

III- Presença de um ausente! Heranças imateriais…

Há heranças que os vivos retêm no corpo! São abstratas! Mas transpiram pelos poros daqueles que permanecem vivos… São vozes que foram incorporadas e digeridas, quando nos nutrimos daqueles que amamos e que partiram antes de nós. Assim Eles sobrevivem: nos nossos discursos; nas nossas obras. Sinal de que seguimos nos alimentando Deles. Donde:

 

Perto do final da peça (“Pessoas perfeitas”), num fragmento de alta potência, espécie de ave maria cheia de graça profana, pela boca de Fábio Penna, ouvi a voz de Alberto Guzik, vivo de novo e enorme. Senão, vejamos:

 

Na mesa em que me sento está o meu melhor amigo, eu mesmo. Algumas outras pessoas embotadas se sentam nas mesas ao lado e desviam o olhar para um horizonte vago e cinza. Uma mulher mais velha e elegante passa com seu cachorrinho e eu me vejo neles. Um casal jovem de mãos dadas passa e eu me vejo neles.  O carrão para do outro lado da rua e a puta sai com um sorriso de bom rendimento, e eu me vejo nela. Um maltrapilho aleijado passa, todo sujo e rasgado, pedindo algum dinheiro ou alguma clemência, e eu me vejo nele. Todos esperamos as paredes do tempo nos engolirem.

 

A reiteração do “eu me vejo nele”, que Penna repete, embalada pela música que ouvimos, são estocadas no fígado.

 

Algo semelhante ocorreu em “Cabaret Stravaganza”. Com muita nitidez, no momento final da peça, ouvíamos o melhor Guzik saindo inteiro da boca de Ivam Cabral, dando o ar de sua graça. Assim:

 

Um dia, vou deitar e esquecer que há começos e fins… Como tantos antes se deitaram antes de mim e tantos vão se deitar depois… deito e se acaba a aventura de tentar encontrar a resposta da questão invisível.

 

Na peça (de 2011), esse verso também é repetido várias vezes. A repetição da beleza triste aí contida lembra uma sinfonia de Mahler e nos diz alguma coisa quase insuportável…

 

Essas duas passagens sublinhadas são dramaturgia. Não se pretendem literatura – mas não ficam nada a dever a ela. E, como é próprio da poesia, ressuscitam uma voz ausente…

 

IV- Arte e cidade!

Em “Pessoas perfeitas”, em suma, o grupo reconfirma o porquê faz justiça à Salva de Prata, a grande comenda, que recebeu recentemente, na Câmara Municipal da Cidade de São Paulo. Celebrando os 25 anos de existência, com uma exuberante passagem pelo coração da cidade, onde eles – como um furacão – deixam sua marca, cratera de vulcão: ali não restou pedra sobre pedra! As imagens cataclísmicas, de desastres naturais, presentes neste texto (vulcão, terremoto, furacão), não são descabidas: a Praça Roosevelt veio literalmente abaixo! Senão antes, pelo contrário: a intervenção das artes na cidade, por mérito do grupo, fez o milagre da recuperação dessa área, tão degradada até anteontem! Milagre da multiplicação dos peixes!

 

Recoloca-se aqui a interrogação do início do texto: a arte cura a cidade?!

 

V- Sobre próteses… Quatro palpites que eu arrisco:

 

1- O clichê talvez seja a nova prótese do século XXI. Uma prótese linguística, não eletroeletrônica – porém, mesmo sendo não palpável, “imaterial” por assim dizer, indica muito da nossa gente e da personalidade de um falante. Até mesmo de um país.

 

2- Por essas e outras – porque o clichê é também uma prótese – penso que os Satyros seguem pesquisando os mesmos temas e obtendo fantásticos resultados. “Pessoas perfeitas” é sequência das investigações presentes, por exemplo, em “Hipóteses para o amor e a verdade” (2010). Mas, no trabalho atual, as próteses se desmaterializaram, transformando-se em verbo.

3- Considero o Teatro Expandido dos Satyros um caso específico do Teatro Veloz. Que consiste, conforme aprendi, em responder rapidamente aos movimentos que o nosso tempo produz e escutar para onde sopram os ventos (qual é a juventude que essa brisa canta?!). Consiste, noutros termos, em dar forma a forças que muitas vezes ainda não têm contorno – fazê-las caber numa equação, que as artes do palco são hábeis em inventar.

4- Se desenhássemos um gráfico, a poesia estaria situada no extremo oposto do clichê, muito embora frequentemente o utilize para fazer seu salto épico. “Pessoas perfeitas” se levanta a cada sessão no palco do teatro da Praça Roosevelt como num grande salto. Os Satyros são sustentáveis em mais de um sentido: muitas vezes reutilizam o clichê para tocar a poesia. E, assim procedendo, em suas pesquisas, desafiam as bengalas da humanidade.

VI- para finalizar, importante dizer que:

 

1- o elenco de “Pessoas perfeitas” é parte do grande staff dos Satyros – outros espetáculos estão e estiveram em cartaz; e outros atores de talento fazem parte do grupo (ou passaram por ele) apesar de não incluídos neste trabalho específico. Minhas palavras se dirigem a eles também.

 

2- lá em casa, somos materialistas dialéticos! Não sei o que isto significa, mas passamos ao largo de esoterismos. O além nunca nos seduziu.

 

Certamente muitas vozes estão presentes nos espetáculos dos Satyros, numa saudável (inevitável) devoração canibalística. A presença do próprio Guzik provavelmente já se insinuava em outros trabalhos. Entretanto, eu nunca havia notado, a não ser nos dois casos pontuais que mencionei aqui. E essa voz soou com tanta força, que não pude deixar de apontá-la.

 

VII- Longa vida aos Satyros! Mais vinte e cinco, mais vinte e cinco, mais vinte e cinco!

 

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]

 

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