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Traduzir a dramaturgia: encenar Luigi Pirandello

Publicado em: 09/04/2018 |

MAURÍCIO PARONI

Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.8

O italiano Luigi Pirandello  (1867-1936) é um emblema do século XX: depois de publicar novelas e romances recebidos discretamente, cria peças idênticas e vira o dramaturgo mais famoso do século. Nestas, declarou que aos mortais não é concedida qualquer identidade além da verdade resultante da convenção burocrática de certos documentos. Se estes faltam, a realidade é incognoscível, todos podem reduzi-la ao que se quiser.

Pequena parte de sua extensa obra teatral foi traduzida no Brasil – há o clichê de que teria inaugurado o teatro apolítico que cita a si próprio. Ou o clichê internacional de que sua obra trata preponderantemente do que pode ser verdade ou mentira. Na Itália, foi muito pior: os clichês floresceram no pântano de décadas de montagens controladas por seus herdeiros.

Pirandello incendiou o teatro por decênios além de sua morte, ocorrida em 1936. Desarmou a ideologia estética do drama burguês ao evidenciar que nenhuma identidade pessoal nasce da própria personalidade, seja real, seja fictícia; para tal, depende da aparência que tem frente ao próximo. Pior: frente a si mesmo. Tudo, então, é fictício. Qualquer material fictício tem a vantagem de poder ser reinventado, mas as conseqüências disso no mundo real são trágicas: o esvaziamento das relações humanas. Não é isso o que vivemos exacerbadamente em nossos dias? Ou: o que pode ser mais eminentemente político, hoje?

Ri-se da seriedade dos seus temas. Quem vai ao teatro, vai para rir do drama que intima e inelutavelmente patrocina. Deixemos a Pirandello o comentário: “Penso que a vida seja uma comédia muito triste, posto que trazemos em nós, sem meios de saber como, porque, ou de quem, a necessidade de enganar-nos continuamente com a espontânea criação de uma realidade (cada um a sua e jamais a mesma para todos), que aos poucos se revela vã e ilusória. Quem entendeu o jogo não consegue mais se enganar; entretanto, quem não consegue enganar a si mesmo não pode mais ter gosto nem prazer pela vida. Assim é. A minha arte é eivada de compaixão amarga por todos aqueles que se enganam; mas esta compaixão não pode não estar acompanhada de uma feroz irrisão do destino, que condena o homem ao engano. (…)”.

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Afastados do engessamento pátrio italiano, a atriz e produtora Ziza Brisola e eu nos encontramos em torno de duas montagens de textos com histórica fortuna cênica dez anos atrás. Tivemos que fazer as contas com a tradição dela decorrente. Companhias centradas investigação teatral como as nossas correm o risco da padecermos do mal inverso – excesso de anticonvencionalismo. Fazemos muita experimentação com autores contemporâneos, vivos e presentes aos ensaios. Pirandello, porém, parecia uma assombração bem-vinda entre nós.

Por que?

Porque a crise comparece a cada espetáculo, pontual e necessária, na vida dos artistas. As relações entre existência, personagem, ator e personalidade são o foco principal de sua obra. Cada um vê o outro de posições inconciliáveis. Tudo vira analítico, perde-se aquela síntese de personagens que, até Tchekhov, imperava na dramaturgia universal. Mas não é só o ator e o homem que não se distinguem mais entre si, segundo a sugestão metafísica posta por Pirandello e seus sucessores (de todas as cores ideológicas). Uma sub-reptícia e patética comédia virou o cerne do dia-a-dia do homem comum, de qualquer classe social: a aparência dos papéis interpretados são a arquitrave da vida-espetáculo de hoje. Essa comedia e’ temática central da obra de Pirandello, a qual forneceu a maior base formal de todo o teatro ocidental contemporâneo.

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Não me recordo bem o nome do diretor italiano fez uma comparação muito apropriada sobre como Pirandello via o teatro. Ele citou um texto de Borges em que o filosofo árabe Averróis, ao traduzir a Arte Poética de Aristóteles, não conseguia entender o que era a síntese da vida no teatro através da tragédia e da comédia. Sequer sabia como traduzir tais palavras. Pirandello, de sua patriarcal Sicília árabe-escandinava (os grandes autores teatrais italianos eram fortemente ligados aos dialetos regionais, como a verdadeira cozinha da península), via o teatro da mesma forma: reinventou-o sem sintetizar arquiteturas estéticas, sem construções alheias ao tempo e espaço reais. Ligado, de maneira pura, ao fluxo dos acontecimentos da vida. Simplesmente, elaboração do choque entre a realidade da vida como ela é e a construção das aparências de que se nutre o teatro.

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Cada Uma a Seu Modo, inexplicavelmente inédita nos palcos brasileiros até a nossa montagem, deitou luz sobre esse aspecto. A trama principal apresenta um corte longitudinal do fenômeno teatral. Mas tudo é permeado pela ausência de valor da sublimação artística conseguida pelo sacrifício material. Antecipa, amargamente, o abaixamento da arte à exposição indecente da intimidade de boçais famosos. Segue arrivismo social e decadência do gosto.

A aparentemente naïf trama auxiliar – uma peça a ser representada no palco do teatro – trata de duelos entre ricos enfastiados. Estes fingem defesas “éticas” das próprias fofocas sobre um caso de amoroso de famosos coroado com o suicídio de um dos amantes.

O texto prevê a interação dos atores com o público. O plano da realidade vira uma ficção despudorada de fofocas. O palco é visto do avesso. Tudo desanda, na multiplicidade de realidades que se chocará com uma aterradora realidade maior: o espetáculo a ser representado não poderá progredir numa síntese, pois o drama dos atores é infinitamente menos interessante do que acontece na platéia, entre o público. Os protagonistas das fofocas e do suicídio real impossibilitam o término da representação. Contradição patética e frustrante, o tema é levado às últimas conseqüências: a peça vagará no vácuo para sempre, desesperada, dada a impossibilidade do seu final. Qualquer discussão, qualquer aplauso que seja, serão espetáculos sem fim, num inferno que Sartre enunciou trinta anos depois através das personagens bem mais “normais” de Entre Quatro Paredes. Mas Pirandello, em 1922, já enunciara a sua cruel sentença: o inferno  é o próprio teatro, de todos os nós-eus para todos os nós-outros.

E aqui estamos ante o problema de propor Pirandello ao publico atual. Coisas como metateatro chocaram a platéia e promoveram uma leitura sob um choque estético que, hoje, não está mais disponível.

Samuel Coleridge nos assinala como convencionalmente se enfrenta a ficção com a idéia de que se estabelece no público uma suspensão voluntária da descrença (“suspension of disbelief”). Trata-se de um pacto entre o autor da obra e o público para poder explorar a obra que lhe é apresentada, conviver com as suas personagens, passando de mero espectador ou leitor o participante silencioso. Essa condição foi – não somente – aniquilada por Pirandello. A capacidade de nos afastarmos da nossa “realidade”, para vivermos outra realidade que alguém nos apresenta não é mais um sonho: é um trágico pesadelo, onde não sabemos mais qual papel representamos. Participamos dela – e visceralmente – mas através da impossibilidade de nos situarmos numa condição existencial minimamente estável.

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Há um velho ditado entre os escritores na Itália, “tradurre è tradire” (traduzir  é trair). Quero crer, porém, que fomos extremamente fiéis ao espírito do autor. As versões propostas no palco partiram exatas ao texto original. Utilizamos as nossas experiências para atingir mais fidelidade ainda ao autor. Para isso, escolheu-se  sermos mais ligadas ao palco do que à literatura, ainda que respeitando as palavras dos originais e o fato que se trata, sim, de um homem de teatro que também é um Prêmio Nobel de Literatura.

Paradoxalmente, na Itália, a tradição formal da reprodução autoral e automática  do texto escrito nos qualificaria qual traidores; Pois, para a realidade do palco, os textos foram literariamente muito modificados por terem sido submetidas ao trabalho dos nossos atores. Contei, para Como você me quer, com a preciosa ajuda de meu então assistente Matheus Parizi, hoje um diretor cinematográfico.

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Os herdeiros de Pirandello, enquanto detiveram os seus direitos autorais, “preservaram-no” de releituras e atualizações.  O instrumento empregado por essa  censura de fato foi a defesa de uma suposta pureza e fidelidade literária. Em sentido contrário, a elaboração última preferida por Pirandello para os textos encenados sempre foi realizada no palco, com atores em carne e osso.  Por uma dessas contradições classicamente italianas, sua primeira atriz e capocomica, Marta Abba, tornou-se sua herdeira principal. Tornou-se a maior defensora dos clichês pirandellistas. Cheguei a vê-la  atuar, quase nonagenária, verdadeira instituição-atriz-ex-amante-de-Pirandello.

A ela foi entregue Como Você Me Quer, acumulação vertiginosa de suspense emotivo, reflexão e humorismo refinado. Requer extremo virtuosismo dos atores. Ouvidas  em seqüência, suas falas adquirem uma neurótica e geométrica progressão de sentidos antagônicos difícil de ser arrestada. Profecia contemporânea,  a peça descreve a ausência de qualquer razão de ser social, econômica ou emocional da personalidade, conceito fundamental da identidade do indivíduo nascido depois do iluminismo. A Qualquer Uma, emblemático nome da protagonista, em nada difere de qualquer jovem alienada dos nossos dias.

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Reescrever para o palco foi prática quotidiana na companhia do autor. A maioria das suas peças são, grosso modo, versões teatrais de suas excelentes novelas, adaptadas às características pessoais e artísticas dos atores à sua disposição. Acredito que a prática não tenha continuado somente porque afirmação do diretor como autor de um espetáculo ainda não se havia realizado na Itália. Esta ocorreu quase concomitante com  a do Brasil, aliás. Não foi por acaso que o teatro brasileiro cristalizou as figuras do diretor e do produtor como demiurgos de um espetáculo pelas mãos italianas do Teatro Brasileiro de Comédia. Tudo foi inspirado pelo historiador e crítico Silvio D`Amico, cujos livros, de tanta importância também para o nosso teatro, infelizmente nunca foram traduzidos para o Português.

Pirandello era um autor tão ligado à encenação que até mesmo a sua morte, por pneumonia aguda, teve origem na sua presença quotidiana nas filmagens de um drama seu. Ele costumava defender-se do frio do set invernal sob o calor de um potente refletor de 5000W, mas o contraste com o vento frio e encanado o constipou severamente. Esse tipo de lâmpada até hoje é chamado de Pirandello pelos técnicos de Cinecittà. Não era metáfora, não era citação, nem era coincidência. Morte real, era fato,  arte e literatura. Sobretudo era o próprio fluxo incontrolável da vida.

 

Pirandello em 1934

 

Pirandello no Théâtre Edouard VII, recebe aplausos com sua companhia para “Seis personagens em busca de um autor”. em Paris, 1925.

 

Homem de palco, Pirandello com a família dos grandes artistas teatrais Eduardo, Peppino e Titina De Filippo (1933).