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Especulação, nomes, dramaturgia e ironia para um fim de ano feliz

Publicado em: 18/12/2017 |

MAURÍCIO PARONI
Especial para a SP Escola de Teatro
Chá e Cadernos 100.6

A risco de sermos rústicos: para gente de teatro, o pensamento marxista não pode se colocar numa dimensão puramente filosófica, sociológica ou econômica.

No coração do século XIX, a união teórica entre realidade e racionalidade foi proposta numa práxis para a construção concreta de uma nova sociedade. A dialética idealista de Georg Hegel (1770-1831) foi virada do avesso pelo materialismo de Karl Marx (1818-1883); Nenhum artista, diante dessa radicalidade conseguiu – nem pode – fechar os olhos.

Entretanto, os modos de vê-la foram quase infinitos, da sua negação total à sua obsessiva e religiosa aceitação. Esse divisor de aguas muita vezes acaba confundido com um temível maniqueísmo empregado para a obtenção de favores, subvenções e consensos; enfrentar a questão, em sua necessária complexidade, é um definidor de qualidade.

A formula Hegeliana da tese que se quer demonstrar para que a antítese da mesma resulte numa síntese pelo embate viaja no idealismo. Para a dialética de Marx, o motor concreto e material da História é a luta de classes: patrícios versus escravos; nobreza e clero versus servidão; capital e mais valia versus trabalho; e, na síntese definitiva, o homem novo do socialismo terá superado a exploração do homem pelo homem.

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Tudo foi, obviamente, menos breve e muito mais complexo que o resumo acima. Para ficar somente na Alemanha: O surgimento do marxismo correu paralelamente ao niilismo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao nascimento da figura do diretor com Georg II de Saxe-Meiningen (1826-1914), ao teatro total de Richard Wagner (1813-1883) em Bayreuth, à alfabetização escolar da maioria do publico teatral e à chegada da luz elétrica nos palcos.

Os dramaturgos do tempo certamente foram enormemente influenciados em aspectos centrais de suas obras pela simples visão daquele quadro. Que tal lembramos como alguns autores empregaram a mesma problemática em suas obras, escolhendo ser um espectador mais reflexivo em vez de um torcedor de arquibancada? Ambas as formas de viver a arte cênica São legitimas, mas este artigo é especulação provocatória. [Perdoem-me, pela ausência, os consagrados György Lukács (1885-1971), Walter Benjamin (1892-1940), Peter Szondi (1929-1971), Hans-Thies Lehmann (1944)e Zygmunt Bauman (1925–2017)]

Vamos a eles:

Henrik Ibsen (1828-1906) – Abalou sismicamente a dramaturgia da “ação presente” quando centralizou seus últimos dramas na ação de revelar aos protagonistas um passado que não “age” – mas que “se sabe”. Revirou os cânones do teatro convencional ao demolir a hipocrisia do burguês por meio de crises individuais nascidas da ruptura da fachada da respeitabilidade do herói. A sanha de seus personagens de mudar o que se sabe do passado naufraga numa extenuante defesa egocêntrica, familiar e social. O aparente altar familiar de concórdia e afeição mútua derrete num antro de conflitos interpessoais por meio de graves crises internas.

Anton Tchekhov (1850-1904) – O dramaturgo e contista completou o naturalismo enquanto imitação da realidade, induzido pela manipulação emotiva e factual de informações para a plateia. Mas o teatro se dá na mente do espectador – a realidade cênica ultima não ocorre palco, mesmo que passe através dele. A quimera do naturalismo puro, aliás, era de atores e diretores do Teatro de Arte de Moscou, de suas apêndices americanas (Actors Studio e Hollywood)e dos teatros livres europeus do final do século XIX. Gênio consciente de sua arte, Tchekhov declarou que escrevia nada além de comedias dramáticas – as melhores jamais escritas.

Oscar Wilde (1854-1900) – Por sua heroica luta moral, teatral e literária, foi o maior responsável pela afirmação intelectual da luta politica do universo Gay. Atingiu o máximo da eficácia da arte engajada numa causa concreta. Com isso, criou a diversidade de uma linha hereditária no drama individual quase comparável à de Shakespeare.

Bernard Shaw (1856-1950) – Criou o teatro de tese, hegeliano por antonomásia. Socialista militante, nenhum de seus protagonistas é movido por um motivo constitutivo humano – senão para demonstrar uma determinada tese. São mais um conjunto de ideias, ideais ou antagonismos em forma de seres, personagens, acontecimentos e desfechos; Escrevia com perfeição artesanal, tempos matemáticos e raciocínios magistralmente engendrados, além de possuir a ironia cáustica de sua cultura e de seu imediato antecessor, Oscar Wilde.

Johan Strindberg (1849–1912) – Introduziu o existencialismo cristão no teatro naturalista antes que se extinguisse a chama iconoclasta de Ibsen. Poeta, dramaturgo, escultor, pintor, fotografo, químico, alquimista e teósofo, prosseguiu até um expressionismo fantasmagórico corrosivo de qualquer certeza operante no limite formal da cena: inventou os pressupostos da contaminação dramatúrgica que usamos hoje – e não conseguimos superar.

Luigi Pirandello (1867-1936) – Levou o triângulo amoroso burguês ao absurdo. O teatro do Século XX não existiria sem esse siciliano que opôs a arte da representação ao fluxo da vida enquanto existência. Seus dramas são mais comédias amargas onde a incerteza existencial naufraga na moralidade e na hipocrisia burguesa; a única certeza de existência real de nossa personalidade poderia, no máximo, resumir-se ao nome que consta de nosso documento de identidade. Legou ao teatro ocidental a certeza formal de ser a única arte em que o que acontece diante do espectador é real: paradoxalmente, o ator finge a realidade dentro do teatro num teatro que não passa de … teatro!

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Os próximos artigos continuam a especular via Piscator, Brecht, Camus e Beckett(II); via Gonçalves dias, Qorpo Santo, performances de Flavio de carvalho, Nelson Rodrigues por Ziembinski, Oswald de Andrade por Zé Celso, Mario de Andrade por Antunes Filho e Dias Gomes (III).

Quem preferir o tão na moda espírito bolsonavique, poderá destinar tudo à fogueira; mas tem a possibilidade civilizada de discordar, xingar, fofocar, venerar, ler ou reler os autores acima, lembrar dos ausentes, os quais lembrarão ainda de outros autores. Que nos trarão vontade de escrever, de encenar, de performar, de filmar.

Bibliografia

Wikipédia.

Enciclopedia Italiana Treccani

Nicolangelo D’Acunto, Carlo Sala, Storia Contemporanea, A. Vallardi editore, Milano, 1998.

Reminiscências de Carl Schurz, Vol. I, Nova York: McClure Publ. Co., 1907, cap. 4, de frente para p. 170.
Retrato fotográfico de Karl Marx sentado com o polegar e a mão na coxa.

Georg Wilhelm Friedrich Hegel
Jakob Schlesinger (1792-1855)