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Carpas na banheira (de Loeb)

Publicado em: 01/07/2017 |

Escritora e psicanalista, Sylvia Loeb acaba de lançar seu quarto livro, no dia 22/06, na Livraria da Vila: “Homens” (editado pela Oficina de Contéudo – da jornalista Carla Leirner). Saída do forno, a obra reafirma as qualidades de incansável tradutora do cotidiano. Em contos curtos, está ela ali sempre a desenhar um pequeno gesto que seu olhar capta e sua imaginação completa.

 

 

Em seus textos, a escritora revela inequívoco compromisso estético: aliança que cobre toda a sua produção, de cabo a rabo, e faz com que pequenas esculturas literárias sejam artesanalmente criadas, como se fossem instalações. Como se a autora testasse e experimentasse cada palavra à exaustão – até chegar a um resultado que guarde em si uma unidade independente, despregada daquela que o escreveu.

 

No campo de pesquisa em que Sylvia se põe, cada célula do seu corpo sabe bem o tipo de alquimia que a interessa: trata-se de ficção – e não de pedagogia. Por essa razão, Loeb não se preocupa em explicar nada. O leitor pega o bonde andando – e ele que se vire! Sinal de respeito àquilo que é fabricado, e respeito àquele que a encontra.

 

Assim, assistimos aos descaminhos pelos quais Loeb conduz e canaliza a sua loucura – que sangra e escoa e escorre e se deita despudoradamente sobre o papel, com notável desenvoltura.

 

 

“Homens” atesta que a escritora está cada vez melhor. E alguns procedimentos do ato de criação loebiano se deixam entrever nesse último livro. Senão, vejamos!

 

Em seu jogo, Sylvia procede a várias condensações, algumas geniais: são várias vozes sobrepostas e combinadas – numa coexistência muitas vezes estranha. As cenas deslizam e, dessa forma, a escrita constrói microtramas de joalheira (as tais esculturas!) – que acabam sempre um pouco antes do ponto em que o leitor desejaria. Como se um tempo peculiar estivesse inserido em cada texto – em que se opera um corte súbito (à moda lacaniana!). Consequentemente, o leitor desce do bonde andando também!

 

Com incrível facilidade a autora se cola na pele de outras pessoas (gente que ela vai buscar sabe deus onde). E absorve, canibal, as suas gramáticas estrangeiras. Às vezes, nos melhores casos, a autora desaparece (sem deixar vestígios!). Fica somente o personagem, ali, sozinho, errante, no meio da página.

 

A absorção veloz de sotaques talvez nasça do fato de Loeb ser, ela mesma, filha de imigrantes. Na páscoa da Diáspora, deve ter visto carpas nadando na banheira de sua avó (imagino eu) – e deve ter tido de integrar várias línguas numa síntese coerente. Vários córregos que se convertem num único rio, cuja bússola deseja o mar.

 

Nos contos curtos que Sylvia esculpe, especialmente nesta última lavra, a psicanálise é silenciada. Não que o código freudiano, que a escritora domina, inexista; antes porque ele comparece digerido e metabolizado e dissolvido na letra de Loeb. É por ubiquidade, não por escassez, que a psicanálise some. Com essa lente, em cada vinheta, Loeb compõe um olhar/fotografia, curiosamente cheio de brasilidades.

 

E, assim, freudianamente, em cada página, percebe-se que o traço da escritora tem carne e corpo. Algumas cenas são prenhes de sensualidade. Como em muitos outros textos, anteriores, as pulsões sexuais estão sempre vivas, atravessando os parágrafos. Sem trégua.

 

Nesse exercício, portanto, como se vê, há um método largo ao qual a autora se dedica, incansável, há décadas – o que talvez não seja conscientemente planejado. Tanto melhor!

 

Seus contos merecem mais de uma leitura: por serem habitados, devido às condensações, outros sentidos são extraídos da próxima visita. Outras vozes são ouvidas.

 

 

Desde seu primeiro livro, “Contos do divã”, de 2007 (Ateliê Editorial), a produção literária mantém vínculos com a psicanálise. No caso daquela obra inaugural, a proximidade com a clínica é patente: trata-se de uma sequência de fragmentos de sessões registradas com invejável liberdade.

 

Mais que tudo, Loeb, ali, desnuda a fantasia do analista – fantasia que dá forma aos discursos dos pacientes, transformando-os em pequenos contos. Metaforizados!

 

Posteriormente, nas produções subsequentes, é como se a autora tivesse deixado o território da clínica imediata – e se encaminhado para fora de seus muros, em investigações que sublinham as fronteiras móveis que distinguem (e aproximam) psicanálise e literatura.

 

Dali em diante, os laços com o dicionário de Freud prescindem de evidência. Inevitáveis, eles estarão sempre aí. Numa onipresença que permite que sejam discretíssimos, hibernando as entrelinhas.

 

E, então, constatado que não há abismo entre divã psicanalítico e ficção, é como se a escritora estivesse afirmando uma grande equivalência, como um postulado: a atividade “sonhante” do psicanalista equivale àquela do escritor. Nesse registro, não é mais relevante separá-las. Elas – as atividades – são uma mesma coisa. Rumam a um mesmo mar.

Loeb, talvez sem pretender, destaca em seus escritos a operação delirante do artista. Gesto criativo que importa ao psicanalista. Ao literato. Ao ator. Ao músico. Ao artista plástico (instalações!). Ao operário do campo das artes.

De resto, nas equações da criatividade, tudo depende de uma dose de acaso. Como se o acerto fosse resultado, em alguma medida, de sorte. Ao lado da dedicação extenuante – que uma obra de qualidade exige -, o sucesso do artista parece se realizar “sem querer” (paradoxo).

 

Entregar-se a uma neblina distraída, ao criar, nas artes ou na clínica, pode ser uma recomendação valiosa: que permite ao artesão dizer mais do que ele pretendeu. “Deixar falar a obra” é, então, o grande lance!  Única maneira de produzir surpresa e de despertar outras cordas sensíveis – que o artista tocou e fez vibrar sem perceber.

“Atenção flutuante”, como se sabe, é o nome técnico que Freud dá a essa posição pré-reflexiva de distração. Nessa onda, Loeb e seus “homens” surfam – e levam junto o leitor.

* por Sergio Zlotnic, especial para o portal da SP Escola de Teatro – [email protected]